Querido David,
Te escrevo para contar como estamos desde que nos despedimos de ti. Foi no sábado, tu ficaste sabendo? Não sei se aí onde tu estás pega o 4G. Sabe como são as coisas, às vezes demora para conectar. Sim, eu sei, a tecnologia não é o teu forte. Tudo isso eu sei. Mas, lembras que o Geder ensinou a usar o equipamento da rádio lá em Boston? Então, eu acho que vai dar certo.
De repente, se tu já tiveres feito amizade, podes pedir para alguém a senha do Wi-Fi. Ah, para. Lembrei que tu podes pedir ajuda ao Magro Lima. Esse aí manja tudo. Vai lá e pede para ele. Não te mixa.
Mas volta aqui que quero te contar como foi. Tu não vais acreditar.
Primeiro que eu cheguei junto com a Martha Medeiros. Era bem cedo, tipo umas oito e pouco da manhã. Mas nós não fomos as primeiras. Antes, o Duda Garbi já tinha chegado, e ele deixou uma camisa do Grêmio bem ali em cima, para todo mundo ver. O Régis adorou. Ajeitou a camisa assim esticada e deixou ali, bem juntinho de ti.
Davidzinho, desculpa, mas eu não consegui impedir. Agora todo mundo sabe que tu és gremista. Tu achas que eu deveria ter levado uma camisa do Inter para dar uma disfarçada? O Regis e o Bernardo riram quando eu sugeri. Ah, vai que alguém acreditasse, sei lá. Mas acho que nem daria. O Bernardo disse que não ia deixar.
Bom, mas em nome da imparcialidade, eu estava lá! E não só eu: o Sóbis, o Guerrinha, o Potter e o Fernando Carvalho. É que o Duda foi esperto e chegou bem antes. Esse Duda! O Nelson adorou.
Sim, o Nelson. Essa eu tenho que te contar! O Nelson foi na tua despedida também. Aliás, a família inteira. Foi o Nelson, o Duda, o Beto, filho do Nelson, e também o Pedrinho Sirotsky. Todos eles. E pior: chegaram bem na hora que eu estava tomando um chope cremoso. É, ali do teu lado. Eu não sabia onde me enfiar. Imagina eu no meio da capela, com um copo daqueles de boteco na mão, enquanto a família Sirotsky chegava.
Aí, eu tentei disfarçar, botei o copo para trás, assim, na hora que o Nelson se aproximou. E olha isso: o Nelson chamou o garçom para trazer mais um chope. JURO. Sério. Foi bem assim. Como assim, chope? É chope. Tinha chope na tua despedida.
Eu vou pedir para te enviarem as fotos que o Botega fez. Enquanto isso eu descrevo: um garçom andava para lá e para cá, com uma bandeja, e servia chope ali mesmo na capela. Servia enquanto as pessoas chegavam perto de ti. Não é para rir. É sério. O Nelson pegou um copo da bandeja, levantou em tua homenagem e fez sinal para eu brindar. Sério, David, olha o que tu me aprontas até depois de ir embora.
Estava todo mundo lá. O Adelor, a Nádia, o Degô, o Zé Pedro, o Ivan, a Neca, o Ademar, a Marcella. O Jones, o Serginho, o Léo, o Diogo, o Maurício, o Marcelo, o Chuchu, o Renatinho, aquele canalha (era assim que tu chamava, né?). A turma da produção fez uma fila: Larissa, Lisioca, Pancot, Yuri. Da época de Boston: a Greice, o Edward, o Rafael, a Gabriella, a Ana Paula. São alguns que eu consegui ver.
Quem mais? Ah, David, eu não sei os nomes todos. Estava toda a equipe da Gaúcha: o Zé, o Gabardo, o Lucianinho, a Andressa, o Diori, o Augusto, o Nilson... eu vou esquecer alguém e aí tu vai me arranjar encrenca. O PG tava também, o Cauê, o Rocca, o Tici, o Perrone. A Pri, lembrei! A Pri veio de Londres, desceu no Rio e já embarcou direto para Porto Alegre. Sim, tudo isso por tua causa.
Quem organizou? Tua família e a Marta. Não, não a Medeiros. A Marta Gleich. Ela estava firme, que nem uma rocha. Até buscar tuas roupas, auxiliando a Marcinha, ela foi. Nessas horas, tem que ter alguém assim, que nem a Marta. Ela não descuidou de nada, nenhum segundo.
O tempo? Ah, estava chovendo. Compreensível, né. Foi como se a cidade chorasse a tua partida.
A tua família ficou ali, ao teu lado, o tempo todo. Bernardo ficou te fazendo carinho. A Marcinha ficava junto com ele, era bonito e emocionante de ver. O Regis, essa parte é curiosa, todo mundo ficou impressionado com o quanto ele é parecido contigo. A esposa dele cuidou tanto da tua despedida, David. A Silvia também não saiu de perto. Ela estava emocionada. A Cris, a Noca, a família toda. Não tinha como ser diferente. Como eu te disse, Porto Alegre chorou.
Ah, tem uma última coisa que eu queria te contar.
No final, a gente atravessou a rua para fazer a despedida mesmo, ali no espaço da Santa Casa. O Tiago Boff foi até lá — ele estava reportando tudo cuidadosamente para a rádio — e observou que tu ficarias bem pertinho do Teixeirinha. Eu achei bonito. E achei que tu ias gostar de saber.
Mas não era sobre isso a última coisa. A última coisa foi uma coisa que o Bernardo disse. Quando todo mundo já tinha ido embora, era quase três da tarde, estávamos caminhando eu, a Marcinha, o Regis, a esposa dele e o Bernardo. A gente ia na direção da Oscar Pereira, de volta, porque os carros estavam estacionados onde havia sido a cerimônia anterior.
E aí o Bernardo, bem calmo, falou sobre a morte. Ele disse que quando a pessoa morre de algo inesperado, como num acidente de carro, ou de avião, a pessoa sofre a dor ali naquela hora. Mas quando é um caso de uma doença que se arrasta, como o teu câncer, a morte não é dor. É alívio. Não um alívio para nós que ficamos, ele disse. Nós sofremos e a gente ainda vai sofrer. Mas para o meu pai, ele completou, a morte não é uma dor. Para o meu pai, a morte é um alívio.
Sério, David. Foi ele que disse isso, assim, de pronto.
Eu engoli o choro.
E pensei: a fruta não cai longe do pé.