A surdez preconceituosa talvez seja a ponta mais aguda da humilhação. A Morte de Ivan Ilitch, a notável novela de Liev Tolstói, considerada uma leitura obrigatória para todos os médicos ou pretendentes, trata das muitas facetas do sofrimento, vistas pelo lado do paciente, o que lhe confere uma densidade desconcertante. Resume a história de um juiz todo poderoso, na Rússia czarista, que se vê progressivamente mais doente e experimenta a mais cruel solidão rodeado de pessoas que deviam protegê-lo mas só fazem mentir, negar, e nem percebem que ele só precisava ser ouvido. Semanas depois, levado a consultar um especialista, imaginou a chance de falar do mal que o afligia, porém, foi de imediato interrompido pelo eminente professor, que lhe disse que não precisava falar nada, porque já sabia o que ele tinha. Nesse dia, mais do que magoado, ele sentiu-se punido pela ironia, porque percebeu que aquela atitude prepotente era a que ele próprio, pleno de saúde e soberba, utilizava como um ser supremo no seu tribunal.
Negar o ato de ouvir acrescenta a solidão ao rosário de queixas de quem só precisava de um grão de afeto para se sentir respeitado e significante
J.J.CAMARGO
Cirurgião torácico e diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre
Na verdade, ele flagrara naquele arremedo de médico um tipo de surdez comum entre os poderosos: a que predetermina que não há nada que aquele mísero interlocutor diga que possa ter o menor interesse. E aqui se incluem todos os que se sentem plenos de poder. Se, por exemplo, a maioria dos políticos percebesse o quanto o ar de enfaro com aquele olho desnivelado e distante desconstrói a sua imagem, repensaria seriamente as campanhas de corpo a corpo, quando nem percebem o mal que fazem com aquele misto repulsivo de indiferença e sudorese, que espalham sobre os incautos cidadãos sedentos de míseros segundos de atenção,
avidamente registrados na câmera do celular emprestado. Uma boa parte daqueles potenciais eleitores, quando aptos a identificar a desconsideração escancarada no vazio do olhar, voltará para casa convencida que, neste tipo, de jeito nenhum.
Uma situação muito semelhante ocorre nos nossos ambulatórios e hospitais: quase ninguém mais tem paciência para ouvir, esta que é a atitude mais elementar no relacionamento digno entre duas pessoas, e que negada, acaba acrescentando a solidão ao rosário de queixas de quem só precisava de um grão de afeto para que se sentisse respeitado e significante. Uma pesquisa americana com entrevistas gravadas em sigilo demonstrou que 14 segundos é o tempo médio para que o doutor interrompa o pobre paciente, que se sentirá multiplicado na sensação de abandono e solidão. A imagem do mestre à beira do leito, rodeado de alunos e examinando o paciente, foi sendo tristemente substituída pela sala de reuniões, em que todos debatem as condutas a serem adotadas em função das magníficas imagens do computador. Enquanto isto, o dono daqueles órgãos, vistos ali em três dimensões, se começasse a gritar “onde estão todos, alguém pode falar comigo?”, certamente seria encaminhado para terapia com algum especialista em ansiedade.
Por isso, não pareceu nada surpreendente que uma enquete feita em um hospital universitário brasileiro, sobre qual nível da graduação prestava um atendimento mais festejado pelos pacientes, tenha revelado uma alta preferência pelos alunos do terceiro ano, justo os que estavam mais longe de se sentirem “prontos”, mas que, desarmados de soberba, ouviam mais e se deliciavam com as histórias daqueles corações solitários. Lembro que, lá pelo final do terceiro ano, fiz uma anamnese na enfermaria do professor Job e, ao sair, a velhinha que eu entrevistara, mais ouvindo do que perguntando porque eu nem sabia o que perguntar, me disse: “Gostei muito deste doutor, porque ele ouve com os olhos”. Não consegui confessar o quanto eu estava longe de ser médico, pois nunca me sentira tanto como se já fosse. Saí rápido para a rua, porque achei que ia chorar. Mas que sensação boa foi aquela!