As coisas que fariam diferença na vida do Adolpho, um velho mecânico aposentado, foram negligenciadas na hora em que deviam ter sido reconhecidas e, agora, eram irresgatáveis.
Pensava no quanto os filhos podiam ter sido melhores se tivesse zelado mais durante o crescimento deles, mas elegera outras prioridades, e só agora tinha que admitir, foram equivocadas.
Às vezes, em madrugadas insones, pensava neles como carros que podiam ter sido concebidos de outra forma, e que ele só tinha se preocupado em asfaltar as estradas que, em algum momento do futuro, percorreriam. Acabava voltando a dormir, torturado pela consciência de que seus projetos nunca vingaram. Quando a mulher morreu, ele se livrou do sentimento de culpa que carregava havia uns 20 anos, de não ter-lhe contado nenhuma das suas angústias.
Por um tempo, imaginou que isso significaria poupá-la de um sofrimento inútil. Mais adiante, percebera que essa introspecção que o martirizava poderia ser diluída se compartilhada com alguém, mas justo aí ela tinha adoecido e, então, blindá-la do desagradável que não poderia mudar lhe parecera a escolha mais justa.
Agora, estava velho e solitário. Os filhos, por quem se preocupara tanto, estavam vivendo a vida deles com autonomia. Tinham encontrado caminhos originais, exercendo profissões que ele nem sabia que existiam. Ninguém ficaria rico, mas, para a sua completa surpresa, nenhum deles estava preocupado com isso.
Com 88 anos, foi encaminhado para consultar comigo por um inocente nódulo pulmonar calcificado. Ao lhe desejar boa sorte, porque com esses achados podia ficar tranquilo e nem haveria necessidade de outros exames, percebi a frustração escancarada na pergunta seguinte: "Mas, então, o doutor que me recomendaram não precisa me ver nunca mais?".
Carências sincronizadas, ficamos amigos, e essas revelações fizeram parte de confissões fragmentadas que se iniciaram na segunda consulta. Um tempo depois, voltou ao consultório. Tinha emagrecido, o colesterol e os triglicerídeos tinham normalizado e o diabetes finalmente estava sob controle. Tentei animá-lo elogiando o trabalho dos outros colegas que cuidavam dele e que, inclusive, caminhando mais ereto, ele parecia ter remoçado. Não adiantou.
O olho seguia triste e, então, resolvi perguntar o que ele contaria para o seu melhor amigo e que talvez ajudasse a controlar a sua depressão. Sem falar, ele estendeu-me a terceira folha de uma longa receita, a que continha as proibições.
Foi sucinto: "Não sei como eles descobriram, mas tudo o que eu gosto neste final de vida está nesta lista!". Desiludido e abandonado, sem outras motivações. Pensei nele como um mendigo da felicidade, esta que, os sábios sabem, só viceja entre as coisas mais simples, e resolvi propor-lhe uma heresia médica: "Vamos fazer o seguinte: um dia, mas só um dia, por semana, o senhor vai fazer as coisas que lhe disseram que fazem mal".
O brilho que iluminou a cara redonda de bochechas vermelhas tinha a rara cumplicidade que identifica amigos instantâneos. Esses que não podem permitir que seus queridos morram do estúpido medo de morrer. Da porta, sempre sorrindo, ele fez a pergunta mais provocativa: "E o tal dia da semana é de livre escolha, não é, doutor?".