Um umbral muito emblemático da senilidade é a exclusão do seu tempo, a que se impõe o velho ao repetir enfadonhamente o quanto, na sua época, as coisas eram diferentes. E eram, mas ele não diz isso só para realçar as mudanças. Ele quer mesmo é dizer que eram muito melhores.
Mas é difícil argumentar que todas as conquistas tecnológicas da modernidade tenham tornado a vida pior, se temos muito mais conforto e vivemos mais. Entretanto, também é verdade que perdemos coisas que nos deixam inconsoláveis e precisamos aparar muitas arestas para que aqueles avanços se justifiquem. Por exemplo, não podemos permitir, sem reação, que a disponibilidade desta avalanche de informações sem qualificação ou triagem nos torne superficiais.
Quando a proposta de modificação dos conteúdos de Ensino Médio determina que história e filosofia não sejam mais matérias obrigatórias, estamos comprando ingresso para os festivais de ignorância graduada. A primeira evidência desta pulverização cultural é a dificuldade de conversação atribuível a uma trágica aliança de pobreza de conteúdo, com escassez de vocabulário. Na verdade, como bem definiu o biólogo Edward Wilson, nós estamos cada vez mais afogados de informações e sedentos de sabedoria. E isto implicará sempre a morte da literatura, a cremação da poesia e a consagração da vacuidade mental dos diálogos nas redes sociais.
A prática do magistério ao longo de anos, com turmas que se renovam a cada semestre, conservando como elemento constante apenas a idade média de cada turma, é um excelente exercício de atualização do comportamento da nossa juventude ao longo das décadas. Como nós e eles vamos mudando, e podemos não perceber o quanto mudamos porque fomos junto com a mudança, nada mais adequado do que registrarmos periodicamente o que pensávamos dos alunos e o que supúnhamos que eles pensavam a nosso respeito. Um rescaldo anual da nossa aventura acadêmica. Reler estes registros pode ser traumático e chocante. Um dia desses, revi um relatório mais longo.
Era dezembro de 1989, e tinha sido um ano para arquivar como especial. A terceira turma daquele ano, era tão emotiva que numa espécie de sarau de final de ano, ao ler trechos de Ferreira Gullar, um casal de estudantes enamorados não conseguia completar, sem pausa, a leitura da Cantiga Para Não Morrer e soluçava da mais pura emoção.
Passados 27 anos, dolorido com a morte do poeta e impressionado com a declaração dele de que não compunha mais havia 10 anos porque perdera a capacidade de se espantar, resolvi testar o significado dessa perda com a turma do smartphone, do conhecimento instantâneo e do kkkkkk no Facebook. No final da aula, perguntei: "Quem já leu alguma coisa do nosso grande Ferreira Gullar, recentemente falecido?"
Houve um silêncio pesado, que diagnostiquei imediatamente como: ninguém vai falar. Não espontaneamente. Então, resolvi inquirir diretamente e escolhi a vítima pela frequência com que ela consultara o celular durante a aula. A resposta veio com aquele ar de surpresa que inspirava o Rolando Lero, da Escolinha do Professor Raimundo, lembram? "Amado Mestre, não me conte que ele morreu!?" E todos riram. Eu, que ainda me espanto muito e sempre fui dependente da poesia, não achei graça nenhuma e, encolhido de tristeza, senti pena dos que nem ao menos souberam que ele existiu.