A julgar pela quantidade de textos e filmes inspirados nela, somos forçados a admitir que a vingança é um dos sentimentos humanos mais ricos. Condenada pelas religiões e censurada por todos os códigos de ética, ela é poderosa, polêmica e, às vezes, sedutora.
Maquiavel recomendou que se evitassem as pequenas ofensas, essas que se multiplicam em picuinhas, e se você quisesse de fato magoar alguém, que o fizesse com tal intensidade que não tivesse mais razões para temer a vingança. John Kennedy, de formação católica, ensinou que devemos perdoar nossos inimigos, mas como ele tinha ambições políticas, considerou prudente que não esquecêssemos seus nomes.
Os partidários do esquecimento como resposta à mágoa que poderia inspirar uma vingança são seres superiores em espírito, porque estão convencidos de que a indiferença maltrata nossos desafetos mais do que qualquer ofensa, e não envolve o absurdo gasto de energia para a elaboração da revanche.
Epicuro reconheceu que "a justiça é a vingança do homem em sociedade, enquanto que a vingança é a justiça do homem em estado selvagem". Mas que existem vinganças criativas e didáticas, ah, isso não dá para negar!
Cleomar trabalhava num curtume na serra gaúcha desde os 13 anos, numa época em que trabalhar, em qualquer idade, era considerado a melhor profilaxia do vício e da malandragem, sem os entretantos da modernidade. Tendo completado 18 anos, foi convocado para o Exército – o que provocou pânico na família, da qual era arrimo e único filho homem. A mãe, viúva, doente renal crônica, gastava três dias da semana fazendo diálise e os outros quatro quase sempre acamada, consumida na prostração da anemia crônica. Arrastou-se em súplicas, mas não convenceu o coronel que reiterava que a pátria era a mãe mais importante. Atravessou então a invernada grande e bateu à porta do seu Aristeu, o maior estancieiro da região, um tipo curioso que reunia duas características opostas e conflitantes: era latifundiário por herança e trabalho, e comunista por convicção e alguma preguiça. A história ia começar com um soluço, mas o velho a interrompeu: "Desculpe, dona, mas a senhora vai ter de se segurar porque choro de mulher me embaralha os julgamentos". Escutou-a em silêncio e, então, resumiu: "Quando o Gervásio, o seu marido, quebrou o pescoço aqui na fazenda onde trabalhou por quase 30 anos, eu perdi o homem mais fiel e dedicado que já conheci. Naquele dia, percebendo que ia morrer, ele me fez um único pedido: não me deixe as crianças passarem necessidade! Então, está resolvido: durante o tempo em que o seu guri estiver no Exército, eu sustento a sua família e cumpro a promessa que fiz ao Gervásio, mas com uma condição: esse coronelzinho não pode saber da minha ajuda. Esse tipo muito me perseguiu durante a ditadura e acho que está na hora de dar o troco. Deixe que eu espalhe por aí que a sua família passa fome por causa dele. Um pouco de remorso talvez amacie o lombo daquela peste".
Anos depois, quando operei o seu Aristeu, ouvi dele esta história, narrada em detalhes maliciosos e um permanente sorrisinho de quem pagou sua dívida de gratidão sem perder a oportunidade de se lambuzar no pote da vingança. Uma história daquelas em que ninguém lembraria de oferecer a outra face. Nem sendo véspera de Natal.