Feita à imagem e semelhança da Operação Mãos Limpas, que desvendou conluios entre políticos e mafiosos na Itália, a Lava-Jato virou sinônimo de combate à corrupção no Brasil. A partir de 2014, ela prendeu centenas de envolvidos em desvios de verbas, denunciou mais de 500, condenou 174 e resultou em R$ 4,3 bilhões devolvidos aos cofres públicos. Essa era a fase visível, exposta em horário nobre por procuradores e juízes com semblante sério e ar de missão cumprida.
Só que a mais famosa ofensiva contra os crimes de colarinho branco no país jamais foi imune a críticas. Que incluem, veja só, inclusive juízes. É o caso do magistrado gaúcho Eduardo Appio, que inclusive chefiou em Curitiba a vara federal onde corriam os processos da Lava-Jato. Ele acaba de lançar Tudo por Dinheiro, livro no qual enumera o que considera uma série de ilegalidade praticadas por integrantes do Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal, com o objetivo de incriminar réus.
O livro até que tem suas passagens engraçadas, quando o juiz Eduardo Appio (gaúcho de Erechim, radicado no Paraná) narra suas pitorescas passagens pelo interior brasileiro em depoimentos ao editor paranaense Salvio Kotter. Mas a maior parte das 272 páginas da obra é dedicada a torpedear a Lava-Jato. Ao contrário dos juízes lava-jatistas que o antecederam na 13ª Vara Federal de Curitiba, Appio sempre enxergou desvios éticos e de objetivos na operação.
A começar pelo czar da Lava-Jato, o então juiz Sergio Moro, cujo sucesso na prisão de doleiros, contrabandistas, lobistas, empresários e políticos ganhou fama internacional. Pois Appio se dedica a desmontar essa imagem, que rendeu a Moro (após largar a magistratura) um cargo como ministro da Justiça no governo Jair Bolsonaro e, depois, a cadeira de senador pelo Paraná.
Appio não tem dúvidas de que a Lava-Jato, logo após o início, se transformou num baluarte ideológico contra os governantes de centro-esquerda no país. Tanto que o presidente Luís Inácio Lula da Silva foi preso pela operação e a sucessora dele, Dilma Rousseff, sofreu impeachment, em grande parte decorrente da impopularidade ganha com as ações anti-corrupção anunciadas por procuradores da República e por Moro durante seu governo.
No arcabouço de métodos da Lava-Jato, Appio aponta coação a presos para que fizessem colaboração premiada, recrutamento de informantes para que delatassem seus parceiros (ou supostos), tortura psicológica ao ameaçar prender familiares de criminosos, espetacularização das prisões. E, aquele que considera o maior de todos os pecados, conluio entre policiais, procuradores e magistrados para condenar, sem preocupação com alegações da defesa.
Nada muito diferente do que foi revelado no livro Vaza Jato: Os Bastidores das Reportagens que Sacudiram o Brasil, da jornalista gaúcha Letícia Duarte. Escrito em 2020, ele se embasa no trabalho do site jornalístico The Intercept, que recebeu de um hacker cópias de milhares de mensagens trocadas entre o staff da Lava-Jato. Elas evidenciam que as decisões sobre quem deveria ser preso, pressionado ou solto passavam por combinações entre Sergio Moro e integrantes do Ministério Público ou policiais, sem participação dos defensores dos suspeitos.
A diferença em relação ao livro da Vaza Jato é que agora as revelações partem de um magistrado que participou da operação anti-corrupção, ainda que ela estivesse em total declínio. Participou e não gostou do que viu. Nem ele, nem muitos ministros de tribunais superiores, que com base nos mesmos estranhamentos de Appio, acabaram anulando várias sentenças da Lava-Jato.
Críticos de Appio salientam que ele é garantista, ou seja, um tipo de juiz que prioriza direitos dos réus e não da sociedade, nos casos de dúvida. Mais ainda: consideram pequenos pecados as combinações entre procuradores e juízes, se comparadas com os resultados obtidos - bilhões de reais devolvidos aos cofres públicos pelos sentenciados.
Appio rebate. Ele não nega que siga a doutrina garantista, mas prefere o termo legalista. E, feito metralhadora giratória, não poupa ninguém no que considera uma gigantesca conspiração para diminuir a autonomia petrolífera do Brasil. O juiz acredita que a operação foi instrumentalizada por multinacionais e governos estrangeiros para sabotar a Petrobras, cujos contratos minados de superfaturamento para pagar propinas foram a matriz das ações da Lava-Jato.
Appio ressalta que policiais, procuradores e juízes da Lava-Jato tiveram intensa troca de informações com agências governamentais norte-americanas. Inclusive o FBI. O magistrado vê nisso indícios de ataque à soberania brasileira:
"A grande questão que ainda precisa ser devidamente comprovada é o vínculo de Moro e (do procurador) Dallagnol com o Departamento de Estado dos EUA e, possivelmente, com a CIA. Há indícios de que Moro teria laços com agências de inteligência norte-americanas, o que é reforçado pelo fato de ele ter buscado abrigo no FBI em Washington assim que os diálogos da Vaza Jato foram revelados. Isso não é teoria da conspiração; é um jogo político real. Sabemos que os estadunidenses sempre tiveram receio de uma aproximação mais forte entre Brasil e China, uma parceria que só agora está sendo retomada, com anos de atraso", diz trecho do livro.
Após desagradar o staff da Lava-Jato (a quem acusa de criar uma fundação que propiciou desvio de finalidade de bilhões devolvidos pelos delatores), Appio passou a andar de carro blindado. Foi removido da 13ª Vara Federal de Curitiba e colocado numa vara especializada em processos previdenciários. Foi investigado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em processo que acabou arquivado. Com o livro, é provável que enfrente nova bateria de investigações. Mas sabe disso e bancou a aposta.
O que: Tudo por Dinheiro, a ganância da Lava Jato, segundo Eduardo Appio, 272 páginas, Kotter Editorial. À venda como e-book, a partir de R$ 34,79, ou impresso (por encomenda) por R$ 80,29.