O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, acaba de determinar à Polícia Federal instauração de inquérito para investigar organizações neonazistas no país. Ele justifica com a existência de indícios de "ações interestaduais", o que demanda apuração federal. Não se trata de mera coincidência que a determinação ocorra horas após o massacre de quatro crianças em uma creche em Blumenau, ocorrido na quarta-feira (5).
Há algum tempo especialistas têm alertado para conexões entre os perpetuadores de ataques em escolas e grupos neonazistas, sobretudo os que atuam na chamada deep web — parte da internet oculta do grande público e usada por criminosos para manter sigilo sobre seus diálogos e propósitos. Antes mesmo de Lula assumir, em dezembro do ano passado, o grupo de transição do seu governo (Dino, inclusive) recebeu um documento intitulado "O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental".
O relatório, coordenado pelo pesquisador na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Daniel Cara, foi elaborado por um grupo de pesquisadores de diversas universidades e descreve os alvos, meios e métodos mais comuns dos atentados em escolas registrados nas últimas duas décadas. O trabalho sugere ações a serem desenvolvidas nas áreas da educação, psicologia, fora das escolas e no âmbito da lei, como a criação de uma rede de inteligência para monitoramento de grupos extremistas.
Uma das sugestões do estudo é que agências governamentais monitorem espaços virtuais de sectarismo, como fóruns e comunidades, por exemplo, para identificar e desarticular grupos que possam cooptar jovens para casos de violência. É exatamente isso que Dino determinou, agora. A prioridade são neonazistas, que têm agido mais no momento, mas existem também extremistas islâmicos (alguns dos quais já condenados por planejar degolas e envenenamento de fontes de distribuição de água, anos atrás).
O levantamento do grupo de pesquisadores aponta para 35 vítimas e 72 feridos em ataques entre 2000 e 2022, normalmente associados ao bullying e "situações prolongadas de exposição a processos violentos". Na maioria dos casos, os autores são mais de um e falavam das suas intenções em grupos da internet.
E qual a relação com neonazismo? Muitas vezes, não é direta. Originalmente, a ideologia nazista não flerta com massacres de crianças, explica um profundo conhecedor do assunto, o delegado da Polícia Civil gaúcha Paulo Cesar Jardim. Ele investigou e prendeu mais de cem integrantes de grupos neonazistas nas últimas duas décadas e afirma que esses grupos são movidos por códigos de honra ("duvidosa, mas ainda assim encarada como honra"). Os alvos preferenciais desses extremistas são judeus, negros, gays e punks.
— Nos interrogatórios e depoimentos, jamais demonstraram intenções de barbárie contra crianças — enfatiza Jardim.
Só que existe um outro tipo de extremista de direita, mais focado nas redes sociais, que prega a disseminação do ódio e da violência e inclui crianças entre as vítimas. É o que apontam algumas investigações da Polícia Civil gaúcha e um monitoramento realizado pela doutora em Antropologia Social Adriana Dias, pesquisadora da Universidade de Campinas (Unicamp), falecida em janeiro deste ano. Conforme essa análise, alguns grupos misturam simbologia neonazista com rituais de violência pela violência.
Entre os "ritos de passagem", exigidos para ser admitido nesses fóruns extremistas da deep web, estão sacrifício de animais e ataques a adolescentes e até crianças, numa duvidosa demonstração de audácia.
É o que aconteceu no Vale do Sinos, quando um grupo de jovens transmitiu em vídeo, pela internet, a tortura e assassinato de um cão. Vários desses jovens se diziam simpatizantes do nazismo. E alguns deles disseminaram mensagens falando em atacar crianças em escolas da região. E, ao contrário do ocorrido no Vale do Sinos, muitas vezes não fica só na retórica.
A especialista Adriana Dias atestou que as polícias já receberam relatos sobre 10 mil pessoas identificadas com o neonazismo ou neofascismo no Brasil. Dessas, cerca de mil no Rio Grande do Sul, conforme mostrou o jornalista Cid Martins em reportagem no ano passado. .
Confira alguns casos de ataques em escolas relacionados a neonazismo:
- Suzano, São Paulo — em março de 2019, 10 pessoas morreram e 11 ficaram feridas em um ataque na escola estadual Raul Brasil. Os autores usavam máscara de caveira e colar com suástica nazista.
- Charqueadas (RS) — em agosto de 2019, um adolescente invadiu uma escola e feriu sete pessoas com golpes de machadinha. O ataque aconteceu cinco meses após o massacre da Raul Brasil e o agressor afirmou à polícia que o caso o inspirou.
- Aracruz (ES) — um adolescente de 16 anos matou quatro pessoas e feriu 12, em novembro de 2022. O assassino tinha um livro de Hitler.
- Monte Mor (SP) — em fevereiro passado, um ex-aluno de uma escola nesse município usou uma machadinha e jogou bombas caseiras na entrada do colégio, antes de ser detido. Ninguém se feriu. O agressor usava uma suástica no braço ao tentar invadir a unidade de ensino.