* Jornalista e escritor
O que era mais sonoro? Pablo ou Paulo?
Ele preferia Pablo, num desafio às usanças materno-paternas e num desacato ao registro civil e à própria lei. Afinal, nestes tempos em que figurões da política inventam nomes e apelidos para facilitar o assalto ao dinheiro público, trocar apenas o "U" pelo B" não podia ser tido como "falsidade ideológica".
Além disso, ele era um irreverente nato e o Pablo que inventou já era um sinal de rebelde crítica que brotava daquilo que ele mais amava: a voz, o som da própria voz.
Sim, porque Sant'Ana – fosse Paulo ou fosse Pablo – queria ter sido cantor. E, para cantar-se a si mesmo, escolheu Pablo, que lhe dava um tom de Carlos Gardel que, no fundo, era aquele a quem mais invejava. Devia sentir-se superior, até, pois Gardel só cantou tangos, enquanto ele sabia de cor (ou dizia saber) mais de 2 mil letras de samba, além dos boleros de Agustín Lara e sem falar dos poemas de Vinícius e de tantos mais. Eu o provocava dizendo:
– Cantor, mesmo, é quem entoa ópera, de fio a pavio, sem microfone! – e só aí ele se calava, invejando talvez o impossível.
***
Foi assim que, lá por 1998, eu lhe trouxe de Buenos Aires um livrinho com as músicas e letras de Astor Piazzola e ele se maravilhou com esse tango-ópera moderna e quis ser Pablo, definitivamente. Mas Piazzola estava longe do cotidiano local e ele preferiu romanticamente declamar Vinícius de Moraes ou Castro Alves ou entoar Lupicínio ou bancar o Gardel no bar do Nito, ou onde fosse.
Eram tempos em que ele achava absurdo que eu – morando em Buenos Aires, a 40 minutos de voo – não frequentasse os cassinos de Montevidéu ou Punta. O cigarro e o jogo em cassinos foram suas grandes paixões, superadas apenas pelo Grêmio e pela irreverência que, muitas vezes, beirava sã megalomania, profundamente crítica mas sem agredir.
***
Sant'Ana tinha respostas a tudo. Quando respondia com um absurdo, o vestia com um tom tão irônico que nos fazia rir e nos calava.
Lá por 2007, quando o cigarro e a boemia mancharam sua saúde com um enfisema pulmonar e ele culpou a velhice, discuti com ele na sala da editoria de Opinião em Zero Hora. "A velhice ataca à traição", disse (tal qual escreveu em crônica da época, republicada ontem) e eu – mais velho do que ele – repliquei: "Não! A velhice é dádiva, é a única prova de vida!".
No dia seguinte, citou minha frase em sua coluna e me criticou por pensar como velho…
***
Conheci Sant'Ana ao voltar do exílio, em 1980, através de Carlos Bastos, então diretor de jornalismo da TV Gaúcha, hoje RBS TV. "Este é um louco genial", disse-me na apresentação e Sant'Ana sorriu com loucura!
No final de 1981, fiquei quase sozinho (como assessor político da presidência da Assembleia Legislativa) ao opinar pelo direito de o suplente Paulo Sant'Ana assumir o mandato de deputado pela renúncia ou licença de dois titulares do então PDS, que abrangia os atuais PP e DEM. Ele queria assumir, mas receava, pois nada tinha a ver com o partido oriundo da velha ditadura direitista, já à morte no governo Figueiredo.
Foi pena, pois ele humanizaria o Legislativo. Recitaria poemas e cantaria tangos, boleros e sambas em plenário. A voz seria som irreverente para criticar desmandos.
***
Pablo ou Paulo morreu sem saber do crime maior praticado em Brasília contra a voz. Contra a sonoridade que a voz expressa e da qual foi amante íntimo toda a vida, através do canto.
Ele estava em coma, inconsciente, quando se soube que Michel Temer havia instalado aparelhos "bloqueadores" e "misturadores de voz" no gabinete presidencial e no Palácio Jaburu. Assim, agora, desaparecem os sons, a sonoridade vira ruído e ninguém entenderá o que o presidente da República diga, converse ou, até, balbucie.
Não haverá Joesleys Batistas para gravar segredos e artimanhas. Silenciaram o som, mataram o significado da alma que a voz transmite! O horror será ainda mais oculto e secreto agora!
Leia outras colunas em zerohora.com/flaviotavares