O esquecimento não ameniza a dor. Ao contrário, transforma dor ou sofrimento em angústia e nos imobiliza como se nos amputassem braços e pernas. Quando a dor provém do crime, esquecer só abre portas ao próprio crime, mostra o domínio da impunidade e escancara a impotência da Justiça.
Assim, indago: a matança de 2013 na boate Kiss pode ser tratada como rixa ou bate-boca entre vizinhos, em que tudo é difuso e tem de ser lento para definir se houve crime e criminosos?
Ou a lentidão do aparelho judicial já nos fez esquecer os 242 mortos e os 630 afetados pela pestilência do cianeto e monóxido de carbono?
***
A cena macabra das centenas de corpos, lado a lado no ginásio desportivo de Santa Maria na manhã de 27 de janeiro de 2013, percorreu o mundo como mostra do horror. Eu estava no litoral do Estado do Rio de Janeiro e, pela Deustche Welle e pela TV France, acompanhei aquele horrendo desfile que me chegava via Europa, em alemão e francês, como um retrato do Rio Grande. O mundo inteiro atordoou-se conosco. A presidente Dilma interrompeu a reunião América Latina-União Europeia, no Chile, e voou a Santa Maria. Cada detalhe novo aprofundava o horror da chacina.
A investigação policial foi minuciosa e profunda. Sem frestas, apontou todos os responsáveis. De um lado, dos "fandangueiros" aos donos da Kiss e capangas, que trancaram portas para impedir "fugas". De outro, os bombeiros e o prefeito Cezar Schirmer, que liberaram a tétrica ratoeira sem portas de emergência.
***
Em quatro anos, porém, qual o resultado? Tudo tende a se diluir, como se os únicos culpados fossem as vítimas. Em termos concretos, o que a Justiça fez neste tempo? Primeiro, os promotores públicos de Santa Maria atenuaram as conclusões da investigação policial. E o prefeito, os funcionários municipais e parte dos bombeiros saíram ilesos, sem chamuscar-se em responsabilidades ou culpas.
Ao chegar aos juízes, o cerne do processo já se extraviara nas interpretações. O emaranhado dos papéis suplantou a grotesca realidade e restaram apenas quatro indiciados pela chacina – os donos da boate e dois fogueteiros da banda. Todos em liberdade!
A visão de impunidade, que recém começava, foi além e cresceu. Hoje, familiares das vítimas respondem a processo por "calúnia e difamação", por criticarem a benevolência da Promotoria de Santa Maria. Viraram réus da Justiça, tal qual os quatro responsáveis diretos pela morte de seus filhos. E sem que os indiretos sequer respondam por coisa alguma!
***
Agora, sem esperança de que surja Justiça, familiares das vítimas recorreram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. O órgão não aplica penas pessoais e irá, apenas, responsabilizar entes do Estado, como prefeitura e bombeiros.
Mas o apelo ao organismo internacional mostra como o crime anda à solta por aqui, enquanto a Justiça se enreda em leguleios que fazem esquecer o núcleo do horror.
***
Há muito, porém, o delito reina impune no Rio Grande.
Nosso maior assalto ao dinheiro público dorme desde 1996 nas gavetas da 2ª Vara da Fazenda Pública, em "segredo de Justiça". Ocorreu em 1987 (no governo Pedro Simon, do PMDB) numa organizada roubalheira que lesou a CEEE em mais de R$ 850 milhões, em valores atuais, superior até ao "mensalão" de Lula em Brasília.
Nunca houve julgamento ou sentença. Estão envolvidas 12 grandes empresas (várias da Lava-Jato) e 23 pessoas físicas, algumas mortas, como o principal acusado, Lindomar Rigotto, assassinado anos atrás.
Em 1º de junho de 2014, dei aqui detalhes do crime. Depois, os repeti em 2015 e 2016. Nada foi adiante. Nem a oposição mencionou o assunto, como se todos se autoprotegessem. Só o ex-governador Germano Rigotto me escreveu para explicar que (mesmo sendo, na época, líder do governo Simon na Assembleia) não havia indicado o irmão Lindomar para a diretoria da CEEE.
Que segredos esconde essa podridão para que Ministério Público e juízes se calem e os políticos nem sequer simulem indignação?
Ou, no reino impune, tudo leva a esquecer?
Leia outras colunas em zerohora.com/flaviotavares