O espetáculo de cores, movimento e imagens que abriu a Olimpíada do Rio foi daquelas coisas da vida inigualáveis de fato. Com beleza e emoção, superaram os jogos de Moscou (que desafiaram a Guerra Fria), Barcelona e Pequim. Pelo Brasil inteiro, renovou-se a confiança em nossa capacidade, despontou a criatividade da nossa técnica e arte.
Essa grandiosidade, porém, será a realidade do cotidiano? Ou é só ficção? E momentânea, com intuito ficcional para entreter pelo belo e o emotivo e, assim, nos fazer grandiosamente felizes por nos distanciar das coisas concretas?
Sim, pois os absurdos persistiram na organização dos Jogos. A baía de Guanabara e a lagoa Rodrigo de Freitas (local de vela e remo) continuam poluídas. A piscina de saltos ornamentais está verde, o remendo com cloro "queima" os olhos dos atletas. A cidade mudou o rosto com obras "para a Olimpíada" e, hoje, parece nova. Mas a Força Nacional de Segurança "entrou por engano" numa favela território do narcotráfico e foi recebida à bala. No Parque Olímpico ou onde for, fuzis do Exército e da Marinha garantem a tranquilidade que não havia antes dos jogos e que não existirá depois.
Após a ficção, o Rio volta a ser o que é. O medo nas ruas rondará as casas.
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Somos um país tão paradoxal que, às vezes, só a ficção expressa a realidade profunda, enquanto o real (como a abertura da Olimpíada) é inventado e passageiro.
A telenovela "Velho Chico" é o retrato disso. A magnífica dramaturgia da TV Globo (que a RBS TV retransmite aqui) vem mostrando a realidade cruel da dominação espúria da sociedade e da política brasileira, a partir de uma história de amor em tom de moderno Romeu e Julieta.
O cenário é o interior da Bahia dos "coronéis" que mandam em tudo – no trabalho e dinheiro, nas fraudes, no amor e (mais ainda) na política. Ali está o Brasil inteiro – entre nós, no Sul, pode parecer diferente, mas é similar ou igual. Nossos "coronéis Saruê", ou "o deputado", vêm do mesmo tronco oligarca, mas se disfarçam noutra roupagem. Só se diferenciam por não serem assassinos.
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Benedito Rui Barbosa, seu neto Bruno e equipe escrevem o texto que Luiz Fernando Carvalho dirige com luminosa e poética fotografia, com diálogos profundos sobre a degradação do Rio São Francisco ou sobre a perversão da violência e da vingança substituindo a Justiça.
Através dessa ficção minuciosa, bela e perturbadora, chega-se à profundeza da dominação política e econômica em que, há séculos, o crime comanda o interior do Brasil.
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Se a telenovela vai à realidade, a realidade vira tosca ficção.
A água "potável" da Capital, de sabor acre e odor a cloaca, mostra como algo vital é tratado com desdém pelo prefeito e pelo poder público. Em abril, sentiram-se sinais de degradação. Em junho, mau cheiro e gosto se acentuaram. Em julho, sem poder detectar a origem, o Dmae enviou 132 amostras a um laboratório de São Paulo, "mais sofisticado", como me esclarece o diretor desse órgão, Antônio Elisandro Oliveira, em extensa carta em que fala das providências adotadas, mesmo sem êxito.
A origem continua "desconhecida". Nada disso, porém, preocupou o prefeito Fortunati, que até viajou no auge do problema, tal qual o vice-prefeito Melo. Sem entender que toda contaminação na água é perigo extremo, nem sequer tentaram uma ação conjunta com o Estado. Não bastou a boa vontade do diretor do Dmae.
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Agora, a Fepam (órgão estadual) suspendeu as atividades da Cettraliq, empresa privada que trata os resíduos de 220 indústrias altamente poluentes que desaguam no Rio Guaíba. Concluiu que a pestilência que dela emana é igual ao cheiro da agua do Dmae... Já em 2010 e anos seguintes, a Fepam flagrou a Cettraliq em infração, por abusar dos limites de lançamento de lixo tóxico junto a áreas de captação no rio. Mas tudo ficou nos papéis, para deleite da incurável burocracia.
O tratamento do lixo industrial ficará com o Departamento de Esgotos Pluviais da prefeitura da Capital, o estranho DEP que, até dias atrás, pagava milhões por mandar "destapar" bueiros inexistentes, em perversa ficção.
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