Medicina sempre foi profissão masculina. Havia mulheres, claro, mas eram minoria. Nos anos 1960, entre os cem alunos da minha turma na faculdade, apenas 15 eram mulheres. Como efeito colateral do machismo que imperava na época, nossas colegas ficavam relegadas à posição de cidadãs de segunda classe.
Quando nos formávamos, as especialidades que as acolhiam eram pediatria, ginecologia, obstetrícia e, eventualmente, a clínica médica. Pouquíssimas ousavam candidatar-se à residência de cirurgia, ambiente competitivo, não sem razão considerado tóxico para mulheres.
Com o aumento progressivo do número de futuras médicas nas faculdades, lentamente, como costuma ocorrer com uma classe que em princípio rejeita mudanças, essas barreiras têm sido removidas. Não como dádiva dos homens, mas pela determinação feminina.
Como resquício do preconceito que persiste na sociedade, as cirurgiãs ainda são vistas com desconfiança por pacientes e familiares, especialmente em áreas com intervenções de maior complexidade: neurocirurgia, oncologia, cardiologia, entre outras. Julgam que faltaria às mulheres resistência psicológica para lidar com o estresse das situações inesperadas que podem exigir tomadas rápidas de decisão, durante o ato cirúrgico.
Anos atrás, o grupo de Christopher Walls, em Ontário, no Canadá, relatou que pacientes operados por cirurgiãs tiveram uma pequena, mas significativa redução da mortalidade nos 30 dias seguintes à cirurgia, menos complicações e menor risco de reinternações nesse período. Em outro levantamento, o grupo encontrou risco mais alto de complicações em pacientes do sexo feminino, quando operadas por homens.
Esses resultados foram recebidos com reservas pela comunidade científica, por terem envolvido números pequenos de pacientes.
Em novembro último, o mesmo grupo canadense publicou na revista científica JAMA Surgery uma pesquisa na qual avaliaram todos os adultos operados nos hospitais de Ontário, no período de janeiro de 2007 a dezembro de 2019. Cerca de 150 mil tinham sido operados por cirurgiãs, e pouco mais de 1 milhão, por cirurgiões.
Os procedimentos incluíram as 25 cirurgias mais frequentes, entre as quais apendicectomia, prótese de joelho, retirada da vesícula biliar, descompressão de medula espinhal, histerectomia e ponte de safena.
Os dados ajustados estatisticamente para afastar a interferência das características do hospital, do anestesiologista e dos pacientes, mostraram custos mais elevados nas cirurgias realizadas por homens.
A partir deste ano, elas serão maioria: 50,2%. No ano 2035, representarão 56% da força de trabalho.
Nos primeiros 30 dias de pós-operatório, pacientes operados por cirurgiões custaram US$ 3.115 a mais. Em 90 dias, US$ 4.228 a mais. Na somatória dos gastos durante 12 meses a diferença ultrapassou US$ 6 mil.
Reduzir custos hospitalares e ambulatoriais de pacientes submetidos à cirurgia tem importância crucial nesta época de despesas crescentes para o sistema de saúde, mas esse problema não será resolvido expulsando os homens dos centros cirúrgicos. O que interessa discutir é por que cirurgiãs e cirurgiões, profissionais que recebem a mesma formação e treinamento, praticam medicina de forma a apresentar gastos tão díspares?
Entre as explicações devem estar as habilidades femininas nas tomadas de decisão e na comunicação com seus pacientes.
É possível que as cirurgiãs atuais sejam mais jovens e atualizadas do que os médicos mais velhos, homens na maioria? Ou que obedeçam com mais rigor as recomendações preconizadas pelos consensos de especialistas das sociedades médicas? Ou que sejam mais estudiosas do que os homens?
Pode ser, também, que a sensibilidade afetiva feminina reforce a empatia com os pacientes, que se traduzirá em comunicação mais clara, maior dedicação e disponibilidade de tempo para as consultas e para atender aos chamados, responder e-mails e mensagens fora de hora que atormentam a vida profissional.
No ano 2000, existiam 219 mil médicos em nosso país. De lá para cá, a população aumentou 27%, enquanto o número de médicos mais do que duplicou. Hoje, somos 562 mil médicos, com participação crescente das mulheres. A partir deste ano, elas serão maioria: 50,2%. No ano 2035, representarão 56% da força de trabalho.
A profissão ficará cada vez mais feminina, para o bem de todos.