Ser mãe é padecer no paraíso, escreveu Coelho Neto no século passado. Duvido que depois de dar à luz alguma mulher concorde com essa visão poética da maternidade.
Na disputa pela sobrevivência entre a mãe e o feto, a seleção natural privilegia a criança que vai nascer. As razões são óbvias: é ela que terá mais chance de manter os genes parentais no pool genético do futuro. Entre os interesses do filho e o bem estar materno, a seleção não perde um segundo sequer para decidir.
A privação de sono que quase todas as mulheres experimentam nas primeiras semanas depois de dar à luz e as dificuldades para amamentar e cuidar de um ser tão dependente explicam a prevalência alta de crises de ansiedade, de depressão e de estresse pós-traumático nesse período.
No caso específico da nossa espécie, o cérebro em formação consome uma quantidade de energia bem maior do que a dos demais primatas. Para suprir essa demanda, o sistema nervoso central precisa receber um fluxo sanguíneo elevado que dependerá da eficiência da interface materno-fetal representada pela placenta. A placenta é a mediadora do parasitismo que estabelecemos com nossas mães desde a concepção.
Da conjunção desses fenômenos biológicos, resultará um cérebro protegido por uma caixa óssea de tamanho desproporcional ao das dimensões da bacia materna. Para dar espaço à passagem da cabeça pelo canal de parto, entram em jogo alterações endócrinas e hormonais que afrouxam os ligamentos, o assoalho e os músculos da pelve, modificações que irão predispor a complicações a médio e longo prazo. Os riscos serão maiores nas mais velhas e nas adolescentes, nas multíparas, nas obesas e nas que sofrem de comorbidades, como hipertensão e diabetes.
Dar à luz em ambiente hostil, violência obstétrica e a falta de amparo familiar e de suporte social afetam a adaptação emocional no puerpério. A privação de sono que quase todas as mulheres experimentam nas primeiras semanas depois de dar à luz e as dificuldades para amamentar e cuidar de um ser tão dependente explicam a prevalência alta de crises de ansiedade, de depressão e de estresse pós-traumático nesse período.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica como complicações pós-parto aquelas que ocorrem nos 42 dias seguintes a ele. A revista The Lancet acaba de publicar uma revisão da literatura médica sobre as que surgem ou persistem a médio e longo prazo.
O levantamento mostrou que elas não são poucas: dor às relações sexuais (35%), dores lombares (32%), incontinência urinária (8% a 31%), ansiedade (9% a 24%), incontinência do esfíncter anal (19%), depressão (11% a 19%), fobia de engravidar novamente (6% a 15%), dores no períneo (11%) e infertilidade (11%). A duração pode chegar a meses ou anos.
Há outras menos frequentes, porém capazes de comprometer a saúde e o bem estar da mãe: prolapso do útero (protrusão do útero na direção da vagina) e demais órgãos pélvicos, fístulas vaginais, mastites, disfunção da tireoide, trombose venosa profunda, anemia, fadiga, miocardiopatia, labilidade emocional e estresse pós-traumático, entre outros males.
Em maior ou menor grau, essas condições podem comprometer o bem estar de qualquer puérpera, mas se instalam com maior frequência nas que foram submetidas à cesariana, à episiotomia, à manipulação do feto com instrumentos (como o fórceps) ou à cirurgia abdominal.
A maior parte das 140 milhões das mulheres que dão à luz anualmente no mundo atravessa o puerpério sem apresentar problemas duradouros, mas são incontáveis as que sofrem por causa deles mesmo depois de partos normais, sem intercorrências. Se levarmos em conta que as queixas femininas costumam ser menosprezadas por médicos e familiares, deve haver um número enorme de mulheres com sintomas persistentes não incluídas em estatísticas oficiais.
É importante ressaltar que esses dados foram colhidos em estudos epidemiológicos realizados nos países industrializados. Em populações como a nossa e as de lugares mais pobres, é bem provável que as prevalências citadas sejam mais altas. Mulheres que vivem nas periferias das nossas cidades, em habitações precárias, com muitos filhos, sem acesso ao saneamento básico, à alimentação de qualidade, sem o apoio e a solidariedade de um companheiro ou da família, certamente correrão riscos mais elevados.
Voltar ao trabalho para ganhar o sustento da casa, ainda mal recuperadas dos traumas do parto, faz parte intrínseca da história de vida dessas mulheres.
Padecer no paraíso ou no inferno, prezada leitora?