A autonomia do médico nunca foi tão defendida. Entre outros, são ferrenhos defensores dela a diretoria da Prevent Senior, os senadores governistas da CPI, o Conselho Federal de Medicina e, pela primeira vez na história da medicina mundial, um presidente da República que a considerou um tema de tanta relevância que fez a apologia dele num discurso de abertura que ficará para sempre nos anais da Organização das Nações Unidas.
É claro que a autonomia é requisito imprescindível para o médico tomar decisões em emergências com risco de morte, situações em que o doente muitas vezes está inconsciente ou incapaz de compreender o perigo que corre. É fundamental, também, para preservar o profissional de pressões para adotar condutas que ele considera erradas ou antiéticas, venham de instituições hospitalares, planos de saúde, autoridades governamentais ou do próprio paciente e seus familiares.
Não é difícil identificar, no entanto, a origem do interesse súbito por esse item do nosso código de ética — vem do famigerado tratamento precoce para a covid-19, defendido com unhas e dentes por muitos políticos e pessoas tão ignorantes em ciências médicas quanto o atual ocupante da cadeira presidencial.
O tratamento precoce caiu com uma luva no discurso dos assim chamados negacionistas.
O tratamento precoce caiu com uma luva no discurso dos assim chamados negacionistas, seguidores da orientação daquele que usou o poder de mandatário supremo da nação para conclamar os brasileiros a andar sem máscara e a formar aglomerações, "com coragem e de peito aberto". Se, ao seguir tais conselhos, os incautos porventura se infectassem, não haveria por que ter medo — contariam com remédios maravilhosos.
Com o aval do Ministério da Saúde, cloroquina, ivermectina, azitromicina, zinco e diversas vitaminas foram empacotados num "kit" apregoado como a cura da doença. Embora inúmeros estudos realizados durante a pandemia tenham demonstrado que nenhuma dessas drogas apresentava atividade contra coronavírus, não faltaram médicos para prescrevê-las.
Alguns o fizeram por ignorância, por não terem o hábito de estudar; outros, por imitar colegas que, como eles, não aprenderam a ler e avaliar trabalhos científicos. Outros, ainda, por acreditar nas notícias falsas da internet e por solidariedade ao presidente. Entre esses, estavam os dirigentes do Conselho Federal de Medicina, um grupo que já comungava dos ideais bolsonaristas antes mesmo de Bolsonaro disputar a eleição.
Temerosos de que recomendar o emprego do tal "kit" provocasse forte oposição da academia e dos especialistas mais respeitados do país, os membros do CFM entenderam que a melhor forma de provar lealdade canina ao governo atual seria garantir aos profissionais o direito de prescrevê-lo sob o manto obscuro da autonomia.
Teria sido mais honesto se os nossos conselheiros federais se dirigissem aos médicos que pagam as anuidades em dia para dizer a eles que, por apoiar a linha política do presidente da República, o conselho garantiria a eles o direito de prescrever medicamentos inúteis, sem que precisassem se preocupar com desvios éticos passíveis de punição por parte do Conselho Federal ou dos conselhos regionais.
Depois, bastaria esperar que os médicos fossem obedientes às ordens do general que comandava o Ministério da Saúde e aos "protocolos" adotados pelas operadoras de planos de saúde, como a Prevent Senior, por exemplo.
Atribuir à autonomia a liberdade para receitar remédios inúteis é tão grave quanto admitir que cirurgiões operem doentes sem indicação cirúrgica ou que médicos insuflem ozônio no reto de pacientes intubados e mantidos em ventilação mecânica nas UTIs. Nos Estados Unidos, o ex-presidente também insistiu que a cloroquina era uma grande arma no combate ao vírus. Em meados do ano passado, assim que surgiram os primeiros trabalhos científicos demonstrando a ausência de atividade da droga, os médicos americanos pararam de prescrevê-la. Sabe por que razão, prezado leitor?
Para evitar punições dos conselhos deles e processos na Justiça por "malpractice" com indenizações milionárias de pacientes que se sentissem prejudicados pelos efeitos colaterais de um medicamento sem atividade. O que fez o ex-presidente americano? Para evitar as consequências legais do investimento desperdiçado, desovou no Brasil toda a cloroquina encalhada por lá.