É injusto considerarmos o presidente apenas um negacionista. Não vamos minimizar seu papel nesta pandemia: ele é um ativista empenhado de corpo e alma em disseminar o novo coronavírus.
Desde o início da pandemia, justiça seja feita, ele faz tudo o que está a seu alcance para que o vírus infecte o maior número possível de brasileiros: condena o uso de máscara, promove aglomerações, recomenda medicamentos sem atividade antiviral e retardou o quanto pôde a aquisição de vacinas.
Finalmente, quando entendeu que o peso da opinião pública ameaçava seu futuro político, autorizou a compra, mas não se vacinou, para servir de exemplo aos seguidores. A pressão para que seus colaboradores fizessem o mesmo deve ter sido tão persuasiva que um de seus ministros, general da reserva, admitiu ter se vacinado às escondidas, "para não criar problemas".
Marcelo Queiroga lançou dúvidas sobre a segurança de uma vacina aprovada pela Anvisa apenas para atender a um apelo político de seu chefe.
Havemos de reconhecer o esforço do nosso dirigente máximo para realizar o sonho de atingir a inatingível imunidade coletiva, não importa que ao preço de tantas mortes. Envolveu tirar máscara de criancinha em público, recrutar médicos para defender remédios inúteis, estimular redes sociais para espalhar falsidades, arregimentar parlamentares para repeti-las, desacreditar os profissionais que ousaram defender evidências científicas e, entre outras medidas, nomear e demitir três ministros da Saúde, até chegar ao atual.
Imagino que não tenha sido fácil para sua excelência encontrar um substituto tão dócil quanto o general que chefiava o ministério anterior, homem que não se envergonhava de dizer que aceitara o cargo "sem conhecer o funcionamento do SUS" e que seu relacionamento com o chefe "era simples assim: um manda, o outro obedece".
No entanto, a julgar pela confusão armada pelo ministro atual a respeito da vacinação dos adolescentes, dias atrás, a persistência presidencial foi muito bem sucedida. Levou a vantagem de que o escolhido trouxe para o ministério a credibilidade que nós, médicos, costumamos desfrutar na sociedade.
Numa entrevista coletiva, o ministro levantou suspeitas sobre possíveis efeitos colaterais da vacina da Pfizer em adolescentes, que estariam a exigir avaliações "cuidadosas" do Ministério da Saúde.
Queixou-se de que alguns Estados aplicavam vacinas não autorizadas pela Anvisa para uso nessa faixa etária, sem dizer quais. Não contente, deixou no ar que a morte de uma adolescente em São Paulo talvez guardasse relação com a vacina recebida uma semana antes.
Para completar, acrescentou que a vacinação dos adolescentes, programada para ter início no dia 15 de setembro, seria suspensa, porque fora abandonada no Reino Unido e contraindicada pela Organização Mundial da Saúde. Duas mentiras deslavadas.
O que teria levado um ministro da Saúde a mentir e a levantar suspeitas infundadas sobre uma vacina testada e aprovada em estudos internacionais, administrada com segurança em adolescentes nos Estados Unidos, na Europa, na Ásia e na América Latina?
A resposta é simples: um manda, o outro obedece, como ficou claro na live do cordato ministro sentado ao lado do presidente, apresentada no mesmo dia. A justificativa foi a de atender a um "sentimento" do chefe, muito "preocupado com os jovens que são o futuro deste país".
Na verdade, o senhor ministro se prestou ao papel desprezível de desacreditar uma vacina importante, apenas para esconder a falta dela em quantidade suficiente para imunizar os adolescentes e, ao mesmo tempo, administrar a terceira dose para os mais velhos, vacinados há mais de seis meses com a Coronavac ou a AstraZeneca.
Suas excelências devem ter concluído que pegava mal junto ao eleitorado reconhecer a falta de uma vacina negligenciada pelo governo, quando foi insistentemente oferecida pela Pfizer, no ano passado.
O que faria um ministro honesto diante da situação atual? Viria a público para dizer que a falta de disponibilidade da vacina da Pfizer, para administrá-la aos adolescentes e oferecê-la como reforço aos mais velhos, só nos deixava uma saída: dar preferência aos que correm mais risco de morrer. Todos estaríamos de acordo.
Preferiu, no entanto, lançar dúvidas sobre a segurança de uma vacina aprovada pela Anvisa, apenas para atender a um apelo político de seu chefe. Assim agindo, assegurou fidelidade irrestrita e se perfilou ao lado dele na luta pela disseminação da pandemia.