Passei o dia entretido com miudezas, perdido no mundo virtual, falando sozinho feito bobo na frente da câmera. Movimento – seria a melhor palavra para caracterizar a vida que tenho levado.
Como muitos meninos da minha geração, fui criado jogando futebol na calçada, o dia inteiro. Se não virei craque, foi por me faltar talento, treino jamais. Na adolescência, a rua era uma extensão do quintal de casa. Durante os anos da faculdade em período integral, acumulei a profissão de professor de cursinho dando aulas todas as noites e nos fins de semana. Depois, vieram o internato e a residência médica com os famigerados plantões noturnos que mal deixavam tempo para o banho, antes de iniciar a manhã na enfermaria.
A memória mais forte dessa época é a do sono que me afligia. Vivia estremunhado, cochilando pelos cantos, sentado em qualquer cadeira, debruçado na mesa. Uma vez, enquanto conversava com meu pai, dormi em pé. Teria caído, não tivesse me agarrado e arrancado da parede a cortina da sala de visitas.
Nenhuma ferramenta tecnológica foi nem será criada para dar mais tempo ao lazer e à convivência com a família e os amigos.
Nas décadas seguintes, a vida profissional aumentou a velocidade dos deslocamentos: pacientes internados em vários hospitais, congressos no país e no exterior, palestras, um projeto de pesquisas com inúmeras viagens ao Rio Negro, atendimento em presídios, gravações para a internet e para a televisão realizadas pelo interior e nas periferias das cidades brasileiras. Para manter a forma física e o equilíbrio psicológico, corria distâncias longas três ou quatro vezes por semana, ao amanhecer.
Em novembro do ano passado, entre idas e vindas, houve uma semana em que peguei avião todos os dias, de segunda a domingo. Avisar minha mulher de que eu iria para uma cidade do Nordeste, e só no aeroporto perceber que o voo seria para outra, aconteceu mais de uma vez. Cruzar o país num voo ao clarear da manhã e voltar à meia-noite para dormir em casa, sem comprometer o dia seguinte, fazia parte da rotina. Era normal demorar alguns segundos para me localizar em que hotel de que lugar eu acabara de acordar.
A tecnologia trouxe mais compromissos. Fax, computador, e-mail, celular e WhatsApp vieram para acelerar ainda mais o ritmo de trabalho, acabar com as horas de folga e nos tornar mais eficientes e competitivos. Nenhuma ferramenta tecnológica foi nem será criada para dar mais tempo ao lazer e à convivência com a família e os amigos.
Em março, a correria foi atropelada pelo coronavírus. De uma hora para outra, virei passarinho de gaiola. Para quem sonhava com tempo para escrever, organizar os livros, ler os que aguardavam empilhados no criado mudo e doar as roupas que hibernavam no armário, não foi tão mal: o isolamento oferecia a possibilidade de passar a vida a limpo e de fazer andar o livro novo que caminhava como tartaruga.
Na primeira semana pus ordem na papelada, alinhei os livros nas estantes, dei aqueles que nunca leria, reiniciei a leitura de A Origem das Espécies, o livro de Charles Darwin, comecei uma revisão bibliográfica sobre câncer de mama e a ler a biografia de Rasputin, personagem que me fascina desde a adolescência, e os contos de Gógol. Vou sair dessa quarentena muito mais culto, imaginei, imbuído dos melhores propósitos. Esqueci que os bem-intencionados fazem fila na porta do inferno.
Vieram as lives, precedidas por testes intermináveis para checar o acesso às plataformas, as entrevistas, as gravações, a louça para lavar, os vídeos educativos solicitados por pessoas e instituições para as quais não posso negar, a cama por fazer, a enxurrada de e-mails, o aspirador de pó, os textos que prometi escrever, o prefácio que não entreguei, a chegada das compras, as consultas pelo WhatsApp, não só de pacientes, mas dos amigos e seus familiares com a covid ou suspeita dela, uma das quais começou assim: “O marido da prima da minha mulher tem um cunhado que sofre de pressão alta, acordou enjoado e não sentiu o cheiro do café, é grave?”.
O dia acaba muito antes das obrigações que me propus a cumprir. Também era assim antes da pandemia, mas na hora de dormir eu tinha o que mostrar para mim mesmo, os doentes examinados, as aulas dadas, a gravação em Parelheiros. E agora? Passei o dia entretido com miudezas, perdido no mundo virtual, falando sozinho feito bobo, na frente da câmera do computador. De concreto, só a cama arrumada, os pratos no escorredor e a escadaria do meu prédio, que subi várias vezes, até ficar lavado de suor.