Não houvesse finalíssima paroquial valendo taça, combinada com estreia na fase de grupos continental dias antes, talvez fosse diferente. Foi dentro de um contexto, mas aconteceu. Os grandes usaram reservas na Libertadores em nome de finais estaduais. É óbvio que Palmeiras e Flamengo só correram o risco calculado de perder para Bolívar-BOL e Aucas-EQU, como de fato perderam, por um motivo: eles têm certeza de que há tempo para recuperar os pontos perdidos.
O ponto é que estamos diante de uma prova cabal. Os Estaduais não são tão desprezíveis e miseráveis assim, como se ouve em certas falsas e pseudo-intelectuais alegações de que, sem eles, o problema do calendário estaria resolvido em um passe de mágica.
Imutável
Se isso fosse 100% verdade — os Estaduais como vilões da história — Flamengo e Palmeiras inverteriam: força máxima na Libertadores e mistão na finalíssima paroquial. Ainda é muito importante ganhar na província. As razões são profundas. Não há como medi-las com números e estatísticas. São questões imutáveis da alma. Do coração. De pai para filho. A paixão do brasileiro por futebol nasce, cresce e se fortalece na rivalidade paroquial. Quando o Flamengo ganhou a Libertadores sobre o River, os memes não foram com argentinos, mas vascaínos e tricolores.
O gol mais repetido da história do Corinthians não foi o do título mundial sobre o Chelsea, de Paolo Guerrero, e sim o de Basílio contra a Ponte Preta, em 1977, encerrando 24 anos de seca. A torcida do Palmeiras cantava Parabéns a Você no estádio, a cada ano na fila. Há outros exemplos, como o gol de Rivellino no Vasco, em 1975: elástico, janelinha e gol. Virou emblema do título da Máquina Tricolor. Não há torcedor pó-de-arroz, mesmo nascido décadas depois, que não saiba do que se trata.
Aqui na Província de São Pedro, nos anos 1970, era tão ou mais importante para o Inter ser octa gaúcho, batendo o recorde do Grêmio hepta, do que a primazia de ser o primeiro gaúcho na Libertadores. A final gaúcha de 1976 foi em agosto. Eliminado no continente em abril, o Inter não viveu choque de data. Repetiu-se a cena na Libertadores colorada de 1977, ano em que o Grêmio quebrou a sequência interminável colorada. O calendário era diferente. Mas posso apostar que, se houvesse o conflito, sobretudo em 1976, o Inter faria igualzinho a Flamengo e PalmeirasG agora.
Cultura
Temos de parar de demonizar os Estaduais, como se eles fossem os culpados de tudo. Eles estão entranhados na nossa cultura. São a base de pirâmide. Empregam muita gente. O fim seria um genocídio. A vitrine é ótima. Tite e Mano Menezes foram apresentados ao mundo pelo Caxias. Grandes craques gaúchos debutaram no Gauchão. Nele moldaram o espírito de competição — ganhar do rival — que os levou à Seleção: Falcão, Renato, Taffarel, Ronaldinho e outros tantos.
Por mais que tentem, nunca vão acabar com os Estaduais. Enxutos, com menos datas e talvez até mais clubes, mexendo na fórmula de disputa, pode-se fazer deles uma pré-temporada de luxo, deliciosa e rentável. Para não ouvir flauta, o poderoso Palmeiras quer ser campeão paulista até em cima do Água Santa. O Grêmio tratou o Gauchão como recomeço desde a primeira rodada, focadíssimo. O Inter talvez tenha saído antes justamente pelo peso emocional de ter de vencer.
Parabéns a Grêmio e Caxias, finalistas do Gauchão de 2023. Ano, quem diria, da consagração dos vilipendiados e sobreviventes ruralitos.