Certa feita, numa dessas empreitadas da noite, o grande repórter Luciano Calheiros viu-se, à mesa do bar, diante de uma linda jovem porto-alegrense. Ele havia conhecido a moça naquele mesmo dia e estava decidido a impressioná-la. Ergueu, então, uma sobrancelha, apertou os olhos, fazendo ar de argúcia, e anunciou para a beldade, com seu manemolente sotaque carioca:
- Agora vou lhe citar Nietzsche...
Essa frase do Calheiros tornou-se célebre no nosso grupo de amigos, espalhou-se entre conhecidos e hoje já é de domínio público. Mas foi ele quem falou, posso garantir.
Por causa do Calheiros, cada vez que alguém cita Nietzsche me dá vontade de rir. Um problema, porque Nietzsche é muito citado modernamente, ele é bom de frases de efeito.
Mesmo assim, sabe o que vou fazer?
Vou citar Nietzsche.
Nietzsche escreveu: "Sem a música, a vida seria um erro".
É um pensamento bem alemão. O filósofo que, de certa forma, foi o antecessor de Nietzsche, Schopenhauer, dizia que a música exprime a mais alta filosofia por meio de uma linguagem que é compreendida pelo sentimento.
Claro que eles não estavam se referindo ao rap ou ao funk. Nietzsche, por exemplo, tinha por Wagner uma devoção que chegava ao fanatismo. Amava-o tanto que passou a odiá-lo. Antes de perder a razão, escreveu um ensaio atacando o compositor.
Mas o que interessa aqui é a frase que citei e que você pode usar em alguma mesa de bar no futuro descoronado, como fez o Calheiros no passado: "Sem a música, a vida seria um erro".
A vida é feita de todas as pequenas e grandes coisas supérfluas que nos fazem sorrir.
A música, portanto, dá sentido à vida. Mas não é só ela. O futebol, a literatura, o cinema, a dança, as artes plásticas, a conversa leve com os amigos numa mesa de bar, são essas coisas das quais a vida não depende que dão sentido à vida. São elas que tornam a existência suportável. Porque, sem elas, o que resta é a morte. A noção da morte inevitável estaria sempre pendendo sobre a vida, como a espada de Dâmocles acima da cabeça de Dionísio, para citar Cícero, que os italianos também têm seu valor.
Numa época como essa, de peste e medo, em que a morte ronda cada casa, em cada canto do mundo, essas amenidades são desprezadas e parecem sem importância. É o contrário: nada é mais importante do que essas coisas sem importância, porque elas sustentam o espírito, que dá sustentação ao corpo.
Pense na mais grave das doenças do espírito: a depressão. Ao deprimido, nada dessas coisas sem importância tem importância. Porque ele perdeu o interesse pela vida, e a vida não é apenas sobreviver. A vida é feita de todas as pequenas e grandes coisas supérfluas que nos fazem sorrir: da arte, do esporte, do lazer, do prazer. Da música. Calheiros e Nietzsche estavam certos: sem o sabor das suas frivolidades, a vida não teria gosto. A vida seria um erro.