No tempo em que o Athletico paranaense não tinha agá, Sergio Moro pedalava sozinho pelas ruas de Curitiba. Imagine ele tentar fazer isso hoje. Seria impossível. Os admiradores o cercariam, implorando por selfies, ou os odiadores gritariam “Lula livre!”, e o derrubariam da bicicleta a pontapés.
A vida de Sergio Moro nunca mais será a mesma, e ele sabe disso. O que essa transformação lhe produziu na alma? Quanto influenciou em suas decisões durante a Lava-Jato? Talvez nem ele possa fornecer essas respostas. Mas o fato é que Moro sofreu, e sofre, uma pressão incalculável. Porque, sobre ele, está todo o peso do personagem mais extraordinário da história do Brasil: Lula.
Certa feita, escrevi que Lula é maior do que Obama. E é. Obama alcançou a façanha de ser o primeiro negro a eleger-se presidente dos Estados Unidos. Não é pouca coisa. Lembre que, no sul americano, a igualdade entre brancos e negros só foi garantida por lei nos anos 1960, com os Direitos Civis. Mas, ainda que a discriminação racial nos Estados Unidos seja mais forte e aberta do que no Brasil, as oportunidades de ascensão de quem é discriminado também são mais fortes e abertas.
A vitória do Obama, portanto, não foi só dele: foi uma vitória da sociedade americana. A vitória de Lula foi pessoal. Por isso, mais difícil. Por isso, maior.
Mas já houve outras histórias de superação parecidas com a de Lula. O que nunca houve foi alguém com tanta capacidade de cativar os intelectuais e as classes altas. É uma espécie de superpoder que ele tem. Uma vez, vi um intelectual gaúcho, figura famosa em todo o Brasil, discorrer sobre a única vez em que encontrou Lula em pessoa. Esse homem inteligente e talentoso falava com a admiração infantil do menino que, trêmulo, conhece seu ídolo do futebol. Os olhos dele faiscavam de afeto, sua voz amoleceu de mel.
A vitória de Lula foi pessoal. Por isso, mais difícil. Por isso, maior.
Era veneração pura. Era bonito de se ver.
O feitiço de Lula também já se derramou sobre muitos de meus colegas jornalistas, o que é ainda mais notável do que encantar um Chico Buarque de Hollanda, por exemplo. Porque o artista é um sonhador, ele pode viver em um mundo de ilusão, e até deve, mas jornalistas são treinados no ceticismo. O jornalista, a priori, desconfia dos políticos. De todos os políticos. Para muitos colegas, porém, Lula está acima até de seus pruridos profissionais. Por Lula eles sentem um amor incondicional. Um amor de mãe.
Outros políticos já foram amados no Brasil, mas não por tantos intelectuais, jornalistas, empresários e integrantes das classes média alta e alta. Getúlio Vargas talvez fosse até mais amado, mas pelos pobres. Brizola também. Fui testemunha ocular do quanto Brizola era idolatrado por pessoas das classes mais baixas da sociedade. E havia razão para isso. Brizola foi o primeiro político brasileiro a dar real valor à educação básica. Foi o primeiro a se preocupar com o que realmente é importante. Quanto a Getúlio, embora tenha sido um ditador e, com sua ditadura, tenha causado um mal profundo à própria alma do brasileiro, Getúlio, apesar dessa nódoa, foi o inventor do Brasil moderno. Getúlio fez um bem estrutural ao trabalhador, seja com a industrialização planificada, seja com a legislação trabalhista.
Lula, não. O grande mérito de Lula foi não alterar a forma de condução da economia e incrementar o Bolsa Família. Medidas ótimas, mas sem caráter estrutural. Outro de seus orgulhos, a abertura de vagas na educação superior, é um engodo: como Brizola já ensinou, as questões da educação (e de todo o país) se resolvem de baixo para cima, a partir da escola pública, nunca a partir da universidade.
Lula se beneficiou por assumir o governo em um dos raros momentos de estabilidade econômica do país, depois do Plano Real. Na época, o mundo todo crescia, sobretudo devido ao empuxo da explosão da China. Lula tinha o Congresso submetido. Lula tinha imensa popularidade. Lula podia fazer quase tudo. Fez quase nada. Não houve reforma tributária ou do pacto federativo, não houve reforma na escola pública, não houve reforma política, não houve nenhuma mudança que fosse realmente sistemática. Quem mais ganhou foi quem sempre ganhou: os grandes banqueiros, os grandes empreiteiros, os políticos.
Mas, para muitos intelectuais e para muita gente com muito dinheiro, Lula é perseguido pela elite raivosa por ter feito bem aos pobres. Investigações comprovam que o governo Lula estava apodrecido pela corrupção, a irresponsabilidade na condução das finanças do Estado fez o país se refocilar na maior crise da sua história, mas intelectuais, ricos e artistas preferem culpar investigadores e julgadores e gritar: “Lula livre!”.
Conheci Lula pessoalmente. Cobri suas campanhas eleitorais. Entrevistei-o várias vezes, desde os anos 1980. Reconheço que ele é um homem simpático, um boa-praça, alguém com quem seria agradável partilhar uma mesa de bar. Para falar a verdade, gosto dele. Mas esse amor que lhe devotam me é incompreensível. Como ele consegue? Lula é um prestidigitador. Lula é um mago. Nunca houve um brasileiro como Lula.