– Não posso entrar no banho agora! – exclamou a Marcinha.
Estranhei:
– Ué? Por quê?
– Preciso ouvir o julgamento!
É que chegava ao seu desfecho o julgamento do caso do menino Bernardo e, pelo que percebi, gaúchos e gaúchas de todas as querências fizeram como a Marcinha: permaneceram, durante horas, prisioneiros da transmissão feita pela Rádio Gaúcha.
O julgamento mesmerizou as pessoas como se elas estivessem assistindo ao capítulo final de Avenida Brasil. Só vi coisa igual em 1990, no julgamento de Antônio Dexheimer. Ele era acusado pelo assassinato de José Antônio Daudt.
Na época, eu era repórter de política, setorista da Assembleia Legislativa. Foi lá que conheci Dexheimer, que estava no fim de seu mandato como deputado estadual. Gostava dele. Era uma pessoa afável, inteligente e com senso de humor. Uma personalidade decididamente interessante. Travamos boas conversas durante as pausas para o cafezinho, no saguão do plenário. Numa dessas, Dexheimer me contou que pretendia escrever um livro sobre o que havia acontecido com ele no Caso Daudt. Ouvi aquilo e lamentei em silêncio: eu é que queria escrever aquela história.
Dexheimer foi absolvido, voltou para Erechim e foi eleito prefeito. Três anos já se tinham passado e nada de o livro sair. Foi então que li uma pequena notícia em Zero Hora informando que ele havia desistido de escrever a história. Ao chegar ao ponto final, saltei da cadeira. Marchei imediatamente para o departamento pessoal do jornal em que trabalhava e pedi demissão. Depois, liguei para Dexheimer e avisei:
– Estou indo para Erechim amanhã para escrever o livro sobre tua participação no Caso Daudt.
Ele vacilou:
– Não… espera um pouco… temos que pensar e…
– Amanhã conversamos! – interrompi. – Vou arrumar minhas coisas!
Não dei tempo para que ele argumentasse. Comprei passagem de ônibus para Erechim e naquela noite mesmo já estava a caminho. Chegando lá, é evidente que o convenci a me dar o depoimento. Em 40 dias de trabalho obsessivo, entreguei o livro para a editora.
Hoje, não seria mais tão impetuoso – tenho mais responsabilidades e quem tem mais responsabilidades tem mais medo.
Essa é outra das grandes perdas que sobrevêm com a idade, além da visão de perto: o desassombro. Nos anos 1990, sem dinheiro no banco ou parentes importantes, simplesmente pedi demissão de um bom emprego e me aventurei em um projeto incerto. Hoje, ficaria cogitando, pingando reticências no meu ímpeto…
Agora, no julgamento do Caso Bernardo, senti ganas de pegar a história pelas crinas e montar nela. É uma trama muito forte. Muito cruel. E, por isso mesmo, muito atrativa, tanto que paralisou o Rio Grande em uma semana de Gre-Nal.
Mas a minha vontade de submergir no caso passou ao ver uma cena pelo portal GaúchaZH: foi quando o advogado de defesa chamou o pai do menino assassinado, Leandro Boldrini, e o postou diante dos jurados.
Boldrini não fez nada além de caminhar até o ponto indicado e lá ficar parado. O problema é que ele vestia uma camiseta branca em que estavam impressas, em azul, as marcas de dois pequenos pés de criança. Eram os pés de sua outra filha. Havia também uma mensagem gravada na camiseta, supostamente uma frase da menina: “Pai, eu sigo seus passos”. Boldrini manteve-se de pé, em silêncio, as mãos ao longo do corpo, enquanto o advogado pedia sua absolvição, falando aos jurados na segunda pessoa do plural:
– Absolvei!
A encenação me causou certa repugnância. Boldrini estava sendo acusado de ter tramado a morte do próprio filho e, para se livrar, usava a imagem de uma filha com quem nem convive (está há quase cinco anos preso), a fim de provar que é bom pai. Era uma pantomima vulgar e apelativa. Boldrini, dentro daquela camiseta, pareceu-me um ser humano menor, um homem de personalidade débil, que topa participar de qualquer farsa em troca de uma vantagem. Quem teria interesse em um personagem assim?
Continuei acompanhando o julgamento, só que agora com mais melancolia do que excitação. Esse foi um caso triste. A vida daquele menino foi triste. Sua morte, mais triste ainda. Nunca será esquecida. Mas não quero mais me lembrar.