Gosto de registrar, a cada ano, o significado do feriado de hoje nos Estados Unidos.
Dia de Martin Luther King.
King foi um gigante da estatura de um Gandhi, de um Mandela. Esses três grandes entre os grandes provaram, na prática, que o cristianismo funciona.
Quando digo cristianismo, o leitor pensa em religião. O que é ruim. A religião, como a ideologia, depende mais da crença do que da lógica. Todo dogma, por natureza, é redutor.
Não se trata de dogma nem de fé. Trata-se de filosofia. A peça central da filosofia de Jesus é o Sermão da Montanha. Ele abre avisando que os mansos herdarão a Terra e recomenda que os homens amem seus inimigos. Finalmente, ressalta que cada um julga os outros com sua própria medida – você vê nos outros o mal que está dentro de você.
É complexo, em sua simplicidade. Tanto que quase ninguém consegue aplicar. Em geral, as pessoas buscam uma filosofia que se ajuste à sua vontade, e não o contrário.
Na história de Jesus, inclusive, há passagens que se prestam a interpretações de ocasião. Outro dia, vi alguém citando uma frase famosa de Jesus: "Não pensem que vim trazer a paz; vim trazer a espada". Se você tira essa sentença do contexto, ela vira a alegria de Hitler, Stálin, Mao e tantos outros monstros que foram o flagelo da humanidade. O que Jesus queria dizer é que seus seguidores sofreriam para defendê-lo e que o debate de seus ensinamentos causaria muita luta e muita dor.
E foi o que se deu.
Mais de 1.800 anos depois de ele ter dito isso tudo, um americano aqui de Massachusetts, Henry David Thoreau, mudou-se para os fundos da propriedade rural de um amigo, situada a 30 quilômetros de Boston. Lá, à beira de um lago, construiu uma cabana com as próprias mãos e passou a viver em simplicidade, sem ter nem relógio para medir o tempo. Thoreau gostava de passear pelo campo e pensar na vida. Registrou seus pensamentos em livros, um deles pregando a resistência não violenta como forma de melhorar o mundo.
Os livros de Thoreau, a filosofia de Jesus e, de certa forma, também a de Buda, mesclaram-se para moldar as cabeças desses três homens, King, Gandhi e Mandela.
King tinha uma nêmesis no movimento pelos direitos civis: Malcolm X, pastor dos Muçulmanos Negros, tão agressivo e belicoso quanto carismático. No começo, Malcolm desprezava King. No fim, aproximou-se e reconheceu que ele tinha razão.
Mandela foi os dois em um só. Era Malcolm, tornou-se King e, sendo King, transformou seu país.
Gandhi reuniu todos: viveu na África do Sul de Mandela e aprendeu que a discriminação tem a mesma natureza em qualquer parte, ainda que pareça diversa: é, apenas, o medo do diferente. Ao ler Thoreau, Gandhi desenvolveu os princípios de desobediência civil. Ao ler Tolstoi, bebeu do cristianismo.
As ideias desses homens que citei, Mandela, Gandhi, Tolstoi, Jesus, Buda e King, continuam obscuras para a maioria. Cada vez mais se ataca o preconceito com a luta, e nunca com a paz.
A postura agressiva e excludente dos que acham estar combatendo o bom combate traz apenas mais agressividade. É a reação ao politicamente correto que gera figuras como Trump. Que, nesta semana, sucederá a um presidente negro, algo com que sonhou Martin Luther King.
As pessoas não suportam mais dedos acusadores. As pessoas não suportam mais serem julgadas. Agora, também estão julgando. E, como advertiu Jesus, com a mesma medida com que foram julgadas.