Hoje esses mais religiosos me chamam de mídia golpista, americanófilo, agente da CIA, mas um dia fui demitido sob acusação de ser comunista, veja só.
Trabalhava numa rede de comunicação que já nem existe mais, em Santa Catarina. A direção da empresa mudou e o novo chefe tomou-se de antipatia instantânea por mim. Achou-me exibido, suponho, tem muita gente que acha, mas ajudou bastante o Caso da Kombi.
O Caso da Kombi foi o seguinte:
Nós, eu e mais alguns técnicos e jornalistas, começávamos a trabalhar bem cedo, antes das seis da manhã, para fazer o primeiro noticiário do dia para as rádios. Como àquela hora não houvesse ônibus para nos levar à redação, que ficava em cima do morro, a empresa mandava Kombis nos buscarem. Quer dizer: Kombis, não; UMA Kombi.
Ocorre que éramos uns 20. Ficava todo mundo apertado dentro daquela Kombi e uns até tinham de viajar em pé. Considerava aquilo perigoso e humilhante, e minha irritação aumentava ainda mais porque acordava às cinco e meia da madrugada. As pessoas dormindo, os cachorros dormindo, os passarinhos dormindo, os elefantes dormindo, e eu acordado. O horror.
Assim, um dia, avisei:
– Se amanhã a Kombi estiver desse jeito, não subo o morro!
No dia seguinte, lá veio a Kombi cheia de gente – eu teria de ir em pé. Pois não fui. Virei-me e saí a passo pela calçada, de volta para casa. A Kombi foi atrás de mim, buzinando, o motorista a implorar:
– Entra na Kombi, David! Entra!
Não entrei. Tiveram de mandar outro carro. Na manhã posterior, a empresa botou duas Kombis para todo mundo. Tornei-me um ídolo entre os colegas. Garibaldi foi o Herói de Dois Mundos, eu fui o Herói das Duas Kombis.
Lindo, mas o novo diretor teve então a certeza de que eu era uma espécie de Lênin caboclo, e me demitiu. Na verdade, ele classificou toda a redação como comunista e demitiu vários outros jornalistas, entre eles o editor-chefe, meu grande amigo Adelor Lessa.
Foi triste o Adelor ter sido demitido junto, mas também foi uma sorte, porque ele tinha contatos e, antes mesmo de ser dispensado, sentindo que o clima estava ruim, passou a negociar com outra empresa, um diário que existe ainda, o Jornal de Santa Catarina.
Esse jornal havia sido adquirido por um conglomerado de empresários e estava cheio de planos grandiosos. O editor-chefe me ligou para perguntar quanto queria ganhar. Fiz um cálculo: meu salário era, digamos, mil dinheiros. Pensei em pedir 2 mil para ganhar 1,5 mil. Pedi os 2 mil. O editor:
– Feito.
Maldição! Por que não pedi 3 mil?
De qualquer forma, era um bom salário. O problema é que, em seis meses, os empresários foram se desinteressando pela brincadeira, foram se retirando aos poucos. E o jornal começou a enfrentar dificuldades. Então, deu-se o objeto desta crônica: eles passaram a atrasar o pagamento. Primeiro, dois dias. Depois, uma semana. Duas. Até que não sabíamos mais quando nossas contas seriam reabastecidas. Era de enlouquecer. A incerteza produzia medo, e não há homem mais infeliz do que o que sente medo.
Vou escrever mais a respeito, mas, por ora, preciso dizer algo. É que estamos na semana de pagamento, e sei que os funcionários do Estado vivem angústia parecida com a que vivi. Pois digo aqui ao governador e aos responsáveis pelas finanças: salário atrasado é degradante. Salário baixo não é tão ruim quanto salário atrasado. Se o governador puder, se os secretários puderem, façam outros sacrifícios, mas não atrasem os salários. Melhor andar com outros 20 dentro de uma Kombi às cinco da madrugada do que receber o salário atrasado.