Nos anos 1980, quando passei uma temporada morando em San Francisco, na Califórnia, os passageiros ainda escolhiam seus lugares nos ônibus obedecendo a uma lei inexistente que separava brancos (na frente) e negros (atrás). O movimento dos direitos civis já era mais velho do que eu, que tinha 20 anos na época, mas as marcas da segregação ainda eram visíveis no dia a dia – mesmo em uma cidade liberal como San Francisco.
Para uma brasileira branca de classe média, capaz de contar nos dedos de uma única mão os colegas negros que teve na escola e na faculdade, o racismo como ele se apresentava nos Estados Unidos era nada menos do que chocante. Não que o racismo no Brasil fosse invisível. Qualquer brasileiro da minha geração tem conhecidos ou parentes que sempre admitiram, privadamente, o próprio preconceito, mas até os anos 1980, se você fosse branco e de classe média, podia passar anos sem ser obrigado a pensar sobre o assunto.
Qualquer brasileiro da minha geração tem conhecidos ou parentes que sempre admitiram, privadamente, o próprio preconceito
Não sei se o país ficou mais ou menos racista nos últimos 30 anos, mas os números de jovens negros mortos pela polícia na periferia, estampados todos os dias nas manchetes, provam que a máscara do racismo "de salão" já caiu há muito tempo.
A boa notícia, em meio a tantas ruins, é que a desnaturalização do preconceito está trazendo à tona histórias que não haviam sido contadas ou estavam esquecidas. Escritores como o baiano Luiz Gama (1830-1882), que criou para si mesmo a alcunha "Orfeu de carapinha" e viveu uma vida que por si só já valeria um romance, agora são estudados na universidade, ampliando nossa compreensão sobre a literatura brasileira do século 19, mas também sobre a escravidão e a história do Brasil.
Gama é apenas um dos muitos exemplos de autores que estavam escondidos na poeira das bibliotecas. Muitas histórias como a dele ainda serão redescobertas – e outras tantas serão escritas. Ao encarar a própria história e os próprios preconceitos, o Brasil fica maior e mais bonito – mas também mais complexo.
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Em tempo de Feira do Livro, duas sugestões de leitura para refletir sobre o tema do racismo: o romance Marrom e Amarelo, do gaúcho Paulo Scott, que se passa no bairro Partenon, em Porto Alegre, e a primeira parte da monumental trilogia "Escravidão", do jornalista Laurentino Gomes.