Sharon Stone de namorico com Bob Dylan e convencida de que Just Like a Woman, composta alguns anos antes de os dois se conhecerem, havia sido escrita para ela. Um cineasta europeu contando como o cantor imitou seu jeito estiloso de segurar o cigarro. A influência da banda Kiss no visual que marcou a turnê Rolling Thunder Revue (1975-1976). Todas essas histórias estão no filme Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese, disponível na Netflix – mas nenhuma delas é verdadeira.
Assim como eu, muita gente deve ter assistido ao filme nos últimos dias sem perceber que, em meio a cenas e entrevistas verdadeiras, o cineasta Martin Scorsese havia inserido depoimentos falsos e atores interpretando personagens supostamente reais. Muitas obras de arte já borraram os limites entre verdade e invenção antes, mas nem todas provocam no espectador essa sensação desconfortável de que ele foi enganado sem uma boa justificativa que sustente o artifício.
Talvez a causa do meu desconforto com as falsas verdades de Rolling Thunder Revue não esteja tanto no fato de que não entendi a piada de Martin Scorsese e Bob Dylan, mas no timing inapropriado para esse tipo de jogo em que as regras não ficam claras para o espectador. Vivemos uma crise de confiança inédita. Nunca tanta gente desconfiou de tantas pessoas ao mesmo tempo – e isso é exaustivo e deprimente, para dizer o mínimo. Não se trata mais de conviver com políticos que não cumprem as promessas de campanha ou se fazem de paladinos da justiça apenas para ganhar a eleição. Estamos diante de homens públicos que vão para a frente das câmeras reproduzir teorias conspiratórias estapafúrdias, fabricadas nos porões mais gosmentos da internet, com cara de quem está revelando o terceiro segredo de Fátima. (E esse é apenas o começo do pesadelo. A tecnologia vai tornar cada vez mais fácil distorcer a realidade e todos nós precisaremos aprender com São Tomé a desconfiar de quem se apresenta como Jesus Cristo ou seu representante.)
"Quase todas as histórias quase certamente contêm algum tipo de mentira." A frase é dita bem no início de F for Fake (1973), pseudodocumentário de Orson Welles que se apresenta como um tratado sobre "artimanhas, fraudes e mentiras" (você encontra o filme, na íntegra e com legendas, no YouTube). Scorsese parece lançar uma piscadela para Welles ao começar seu falso documentário do mesmo jeito: com um truque de mágica. Como se tudo fosse uma grande brincadeira e estivéssemos todos, de alguma forma, atuando uns para os outros. A começar, claro, pelo camaleônico e elusivo Bob Dylan.
Pra mim, desta vez Scorsese errou a mão. Em 2019, nada é mais subversivo e ousado do que dizer (e procurar) a verdade. The answer, my friend, is blowin' in the wind.
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Hoje, às 18h30min, eu e o professor Flávio Loureiro Chaves estaremos na Sala Álvaro Moreyra (Erico Verissimo, 307) falando sobre Os Livros de Nossa Vida, projeto da Coordenação do Livro da Secretaria Municipal da Cultura com mediação de Sergius Gonzaga. A entrada será franca – e a conversa também.