Uma das minhas primeiras providências, digamos, práticas quando completei 50 anos foi montar uma playlist com "as músicas da minha vida" no Spotify – uma espécie de "back up" em caso de amnésia súbita. Vai quê.
O foco não eram as músicas de que eu particularmente mais gosto ou gostei (para essas tenho outras listas específicas), mas aquelas que me lembram cenas soltas da infância – a canção que minha vó cantava quando me colocava para sestear (A Praça, do Ronnie Von), a música que meu pai mais escutava (Carinhoso), a de que eu gostava porque tinha o nome da minha mãe (Madalena, na voz da Elis Regina) e outras tantas que evocam novelas, reuniões dançantes, férias na praia. Tecnologia a serviço da nostalgia.
Proust concebeu os sete volumes de sua obra-prima, Em Busca do Tempo Perdido, como uma ilustração literária da potência das memórias involuntárias despertadas por experiências banais do cotidiano – comer um determinado biscoito embebido em chá, por exemplo. Quanto mais circunscritos a um determinado período da nossa vida, mais esses momentos funcionam como uma espécie de gatilho para viagens no tempo: o desenho nas pedras de uma calçada, a luz entrando diagonalmente pela persiana de uma janela, um prato, um retrato, uma canção. Sem qualquer esforço racional, essas experiências nos inundam da presença de personagens e cenografias de uma outra época – e isso é o mais perto que somos capazes de chegar de partes das nossas vidas que se perderam ou não existem mais, nos ensina Proust. No caso dessas músicas que eu escutava no rádio ou na TV no início dos anos 70, reencontro o apartamento na Rua Riachuelo onde eu nunca mais coloquei os pés, a varanda da casa dos meus avós quando ainda parecia maior do que de fato é, o Gordini marrom do meu pai que "escangalhava" todas as vezes que saía da garagem. Eu mesma com idade para me espantar com tudo e com todos.
Memórias involuntárias, venho percebendo, podem estar escondidas nos lugares mais improváveis – e nem sempre são agradáveis e docemente nostálgicas. A voz e o rosto de um político, por exemplo. Nos últimos meses, descobri que basta o presidente aparecer na TV falando sobre qualquer assunto – PIB, Previdência, mulheres, supermercados ... – para eu ter a sensação nítida de que estou de volta aos anos 70. Pior: de que nunca saímos de lá.