O luto é uma experiência avassaladora. Sua vida terá um antes e um depois.
Porque, pela primeira vez, você tem que pensar pelo outro. Pela primeira vez, você tem que ser literalmente o outro. Não é força de expressão. Antes você perguntaria facilmente, agora você precisa imaginar as respostas e decidir o futuro de acordo com tudo o que conheceu daquele passado.
No funeral, tem que adivinhar de qual o caixão a pessoa iria gostar, por qual arranjo de flores ela iria optar. Tem que vestir o finado. Tem que eleger peça por peça de sua despedida. Tem que chamar seus contatos frequentes. Entender quem ele iria querer que estivesse presente no adeus.
Na partida, sem ensaio, sem treino, subitamente, você precisa substituir o seu afeto, ocupar a mente dele, tentando conjecturar quais seriam as suas escolhas.
Dispõe apenas de ecos da intimidade, de flashes da memória em comum, para sondar a melhor alternativa.
Como nem todas as últimas vontades são declaradas, é obrigado a se lembrar dos seus gostos, atravessando de pés descalços o deserto da ausência, e puxando características pessoais de fragmentos, testemunhos, rascunhos.
Assim recorda e sofre, sofre e recorda no calor das pegadas. Cenas vêm à tona, detalhes, sutilezas, coisas que nem desfrutava de consciência de que havia vivido.
De repente, emerge à superfície uma conversa do quanto o ente querido se alegrava com a simplicidade das flores de campo, mais do que com a realeza das rosas, mais do que com a loucura dos girassóis. Emerge à superfície que ele amava Heitor Villa-Lobos, e sempre chorava com as Bachianas. Emerge à superfície seu pendor aos incensos e velas aromáticas.
Você passa a montar a cerimônia do desfecho, juntando os pormenores de suas preferências, da música à decoração.
Só que esse processo não termina no enterro, e será estendido pelo resto dos seus dias.
Assumirá um cargo na dor, uma nova responsabilidade no sofrimento. Você se tornará o representante oficial da saudade de alguém perante os demais. Buscará deduzir o que o falecido faria se estivesse vivo. Que atitude ele tomaria? À direita ou à esquerda? Vermelho ou azul? Amargo ou doce?
Serão pareceres a todo momento, a toda hora. Não há como pedir ajuda ou socorro.
Para quem doar os pertences? Quem fica com o quê?
Existirá um grau de subjetividade que atordoará as mais inócuas definições, porque você jamais saberá se estará realmente acertando. Como os mortos não podem mudar de opinião, restará arriscar, respeitando um padrão de comportamento, recuperando andanças e dizeres lado a lado.
Em qual cemitério ele desejaria repousar? Terra ou cinzas? Se cinzas, onde depositá-las? Se lápide, o que escrever em homenagem?
É o percurso mais complexo, mais à flor da pele da perda: habitar o juízo alheio. É um lugar desconfortável, um não ser sendo, um amar por dois.