Testemunhamos uma epidemia das bets no país. Deixamos acontecer. E a colheita é a inadimplência.
Sempre tive consciência da potência da tentação. É quase irrefreável nossa compulsão para gabaritar resultados, começando pelo nosso próprio time. Todo mundo anseia ser profeta e dominar o futuro.
Assim como você ganha, você perde. E o hábito faz você perder muito. Chega um momento em que não assimila mais quanto gastou.
Não vejo saída. Quando você acerta, sua ambição é atiçada, e aplica o lucro em novas transações. Quando você erra, sua culpa é ativada, e busca recuperar o prejuízo com a reincidência.
Afora a ansiedade e o pânico que resultam da apuração dos resultados.
O azar venceu a sorte, e atingiu a parcela mais carente da população. Até o Banco Central se mostra receoso com o aumento de 200% nas movimentações financeiras das apostas.
É óbvio que a oferta de fácil enriquecimento atrairia quem mais precisa.
Em agosto, os beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em bets via Pix. O montante destinado às empresas de apostas corresponde a 20% do valor total repassado pelo programa no mês.
Dos 20 milhões de beneficiários, 5 milhões realizaram apostas no mês passado. O valor gasto por pessoa foi de R$ 100, enquanto se recebe R$ 681,09 com o Bolsa Família, liquidando 14,68% da verba suplementar. Bolsa Família virou Bolsa Bet.
Se o programa do Governo Federal tem o propósito de tirar milhões de famílias da fome, as apostas eletrônicas as colocam de volta na linha da pobreza.
Para ter direito ao Bolsa Família, a principal regra é que a renda de cada pessoa da família seja de, no máximo, R$ 218 por mês. Ou seja, quem pratica as apostas, em média, compromete metade dos seus ganhos reais.
O rombo parece ser muito mais grave, já que não estão sendo contabilizadas apostas feitas por cartões de débito ou crédito. A radiografia exata do cenário exigiria um complexo cruzamento de dados.
O que é evidente é que amargamos uma epidemia, a legalização do cassino no celular, insuflada por uma paixão nacional: o futebol.
Proibimos o jogo do bicho, máquinas caça-níqueis, mas consideramos normal adivinhar número de escanteios, de gols, de expulsões, numa infinidade de prodigiosas casualidades em uma partida.
A sociedade vem despertando desse pesadelo — espero que não seja tarde demais! —, percebendo o lado perverso da atividade. Já se nota um empenho que une governo e segmentos sociais para regulamentá-la e criar mecanismos que evitem o descontrole, capaz de ameaçar o sustento e a sanidade dos lares com o crescente endividamento.
Desde já, devemos tomar providências: aclarar os meios de pagamento, garantir transparência tributária, responsabilizar as empresas. Desse modo, estabeleceremos uma assepsia do setor e eliminaremos a possibilidade de lavagem de dinheiro e outras práticas criminosas.
Agora só quero entender quem sustentará a reabilitação do vício de milhões de pessoas. Não se emerge de uma intoxicação psicológica sem acompanhamento. Não se sai sozinho do fundo do poço, sem uma escada.