Vamos ao roteiro básico da jactância: um procurador do Estado de Minas Gerais estava acomodado no cinema de um shopping em Belo Horizonte. A pipoca e o refrigerante são servidos dentro da sala, naquelas mordomias de sala vip. Você tem direito ao refil assim que termina, entretanto deve voltar para a bomboniere. O procurador não aceita, quer ser reabastecido na sua cadeira. Não pode se mexer por alguns metros, como todos ali. Ele, então, dirige-se para o atendimento disposto a xingar a funcionária e cobrar a injustiça. Repete a sina colonialista do carteiraço: “você não sabe com quem está falando?”.
A atendente não o conhece e apenas responde educadamente: venho seguindo as regras.
Na burocracia da onipotência, ele exige em vão falar com o gerente.
Sem receber as regalias, parte para a ignorância como um animal irado, solta desaforos, tenta agredir, é afastado por seguranças e cospe em direção ao rosto da moça.
Depois, logo ele, que não admitia deixar de ver nem um minuto do filme, abandona a sessão e foge.
Descrevi fatos reais que aconteceram em início de julho. O cidadão foi encontrado pelo CPF que constava na nota. E tudo o que ele fez acabou devidamente gravado.
Ele se retratou publicamente, estabeleceu indenização para a atendente, e agora sofre sindicância profissional para apurar sua má conduta.
Mas o que eu desejo discutir é que, curiosamente, essas autoridades ou pessoas influentes nunca têm um chilique com o escalão de cima. Jamais explodem com seu chefe, ou com o coordenador de sua função. Sempre produzem um ataque de nervos, uma covardia moral contra alguém desfavorecido.
São surtos seletivos, hierárquicos. Não é tanta loucura assim, não perderam inteiramente a cabeça, porque mantêm o discernimento de quem eles podem atacar, tirando proveito da fragilidade e vulnerabilidade social de suas vítimas.
Escolhem as suas presas do térreo da sociedade.
Não insultam seus pares de prestígio, seus iguais nas fileiras de favores.
Jamais ele cuspiria no governador Romeu Zema. Ou no procurador-geral Paulo Gonet.
Ou seja, são atitudes premeditadas e controladas no interior da raiva.
Se ele não fosse filmado, se ele não registrasse o número do seu documento na nota, pediria desculpa espontaneamente?
Haveria o peso da consciência? Ou o escândalo viral que circulou nas redes sociais é que precipitou a sua súbita e desesperada modéstia?
São acessos de menosprezo e preconceito próprios do elitismo, de abonados que se sentem numa posição superior, tendo como alvo preferencial trabalhadores do dia a dia.
Com infeliz frequência, testemunhamos maus-tratos a motoboys, a entregadores de delivery, a recepcionistas, a vendedores de lojas, a garçons, a frentistas.
Os agressores nem sempre são descobertos, nem sempre existe uma câmera por perto. Estão acostumados com a impunidade das sombras.