No momento de seguir ao trabalho ou à universidade, jamais perdia a minha parada por estar dormindo no ônibus ou no trem. Valorizava a pontualidade. Não brincava com os meus compromissos mesmo partindo de madrugada de casa, ainda com o breu e a lua no alto. Não arriscava o estudo ou o ganha-pão.
Na ida, eu poderia cochilar, pestanejar, mas martelava a cabeça de repente no vazio e voltava à realidade. Olhava a paisagem ao redor, estabelecia a minha localização, pescava com os olhos um prédio de referência e, ainda em tempo hábil de apertar a campainha, conseguia descer, cambaleante, no ponto certo.
Eu me censurava porque cultivava um alto senso de responsabilidade. Fazia questão de me sentar no corredor para o evitar o tumulto e sair mais rápido em direção à porta.
O problema era a volta. A terrível volta. Quando relaxava dos compromissos já vencidos, eu simplesmente apagava, desmaiava, entrava em coma. A paz de espírito me anestesiava do contato externo. Mudava até de assento, aconchegando-me no travesseiro da janela, para não ter o incômodo de dar passagem a alguém ao meu lado.
Eu me censurava porque cultivava um alto senso de responsabilidade
Terminava chegando tarde ao lar porque não ressuscitava na hora de descer. Retornava uma parada, caminhava algumas quadras, mas nenhuma demora considerável que pudesse gerar apreensão nos filhos e esposa.
Eu vivia jogando tabuleiro com o destino. Só que nunca havia recuado mais casas do que havia avançado. Permanecia na igualdade entre sorte e azar nos dados dos horários.
Até acontecer o blecaute. Na época, morava em São Leopoldo e trabalhava em Porto Alegre. Na saída do emprego, lembro que entrei no Trensurb na estação do Mercado Público. Ao acordar, eu estava estranhamente na estação da Rodoviária de Porto Alegre.
Ué, parecia feitiço. O trem andou para o lado errado?
Eu me encontrava uma parada antes daquela em que entrei. Fiquei perplexo, custei a entender o lapso. Seria uma dimensão paralela, experimentava o multiverso?
Afinal, a minha sensação era que havia adormecido apenas por alguns minutos.
Não podia ser verdade. Porém, pela lógica, fui a São Leopoldo e voltei para a capital sem perceber. O sono profundo me enganou com a sua intensidade e cronologia toda particular.
O mais grave vem agora: espiei o relógio e haviam transcorrido três horas de minha saída. Embarcara às 19h e já eram 22h.
Ou seja, pasmem: eu havia ido a São Leopoldo duas vezes e voltado.
Virara noites consecutivas para concluir a minha dissertação de mestrado em Letras na UFRGS. Apesar de rastejar como um morto-vivo, jurava que ainda mantinha controle sobre o meu corpo.
Que nada, não subestime a avalanche do cansaço no sangue.
No ônibus, certamente teria sido cutucado pelo cobrador ou motorista no fim da linha. Mas no trem, enquanto o bilhete também já dormia há muito tempo na roleta, não contava com nenhum despertador humano.
Difícil mesmo foi explicar para a família onde eu estava. Ninguém acreditou em mim. Bati o recorde de cochilador em transporte público.