Eu tinha inveja do passaporte de Gloria Maria, não devia ter lugarzinho para nenhum novo carimbo. A jornalista viajou por mais de 100 países, atravessando a Europa, a África e o Oriente. Ela escalou o Himalaia, dividiu refeição com esquimós, experimentou a gravidade zero fora da órbita da Terra. Era a nossa coragem abrindo caminhos, descortinando paisagens desconhecidas e sensações inéditas. Era nosso Indiana Jones de verdade, pioneira em tudo, quebrando marcas, derrubando preconceitos: a primeira repórter a entrar ao vivo e em cores no Jornal Nacional, apresentadora do Fantástico e do Globo Repórter.
Eu tinha inveja de sua proximidade com ídolos e celebridades. Entrevistou Michael Jackson, Nicole Kidman, Leonardo DiCaprio, Freddie Mercury, Elton John, Mick Jagger e Madonna, entre tantos.
Eu tinha inveja da sua fluência no inglês, no francês, no espanhol e no italiano, até no Latim. Ela não arranhava idiomas, passava a limpo com sua voz grave e inesquecível.
Eu tinha uma absurda e incomensurável inveja de sua potência de ser.
Eu tinha inveja de sua liberdade, de não ficar dando satisfações da sua privacidade, de não dizer quem amava e com quem saía.
Eu tinha inveja de sua falta de idade. Ela nunca confessava quanto tempo tinha de vida. Não caiu na cilada do etarismo, jamais envelheceu. Até porque risos não envelhecem.
Eu tinha inveja de sua simplicidade, dessa facilidade vocacional de puxar assunto com qualquer pessoa em qualquer situação, do morador de rua ao milionário no topo da lista da Forbes.
Eu tinha inveja de sua personalidade vulcânica, determinada, resoluta. Falava “não” com o mesmo entusiasmo de um “sim”, sem concessão, sem estar onde não desejava, sem permanecer onde não merecia. Tornou-se uma unanimidade, tornou-se parte de nossa história, um rosto familiar e definitivo de nossa rotina, como uma irmã trabalhando longe.
Não conheci ninguém que não gostasse dela. Ninguém. Essa carioca cosmopolita, nascida na Vila Isabel, filha de um alfaiate e de uma dona de casa, foi uma emissária divina do amor à primeira vista. Uma correspondente da linguagem dos anjos.
Eu tinha inveja de sua curiosidade, de como não permitia que condicionamentos apequenassem a sua existência.
Eu tinha inveja de sua generosidade. Adotou duas filhas na maturidade, quando realizava trabalho voluntário para a Organização de Auxílio Fraterno (OAF), mostrando que a maternidade vai muito além do ventre, é filiação pelo espírito.
Eu tinha inveja do jeito que ela segurava o microfone, todo particular, fazendo ele desaparecer no decorrer da conversa. Onde ela o escondia?
Eu tinha inveja de sua combatividade nas reportagens. Assumia riscos, entrava em zona de conflitos. Esteve na Guerra das Malvinas (1982) e nos bastidores da invasão da embaixada japonesa do Peru (1996).
Eu tinha uma absurda e incomensurável inveja de sua potência de ser. Uma inveja do bem, uma inveja que se consolidou em exemplo de postura. Uma inveja que procurou imitá-la, que buscou reproduzir os seus trejeitos, o seu aceno suave de tchau, o seu olhar brilhante, a joia do seu abraço.
Nossa Gloria Maria, que vida invejável a sua, capaz de transformar até um defeito em virtude, em admiração.
Só ela pode colocar na lápide: fez o que quis.