Meu amigo Bruno perdeu seu pai, Luiz Antônio, em dolorosos capítulos, durante 12 anos, por demência frontotemporal – uma doença que atinge partes específicas do cérebro, chamadas lobos frontais.
A enfermidade desencadeia mudanças de personalidade, impulsividade, perda de inibição, atitudes agressivas, compulsões, irritabilidade, falta de interesse e de apetite pelo conhecimento. Subtrai a capacidade de articular as palavras.
A sociedade desaparece dentro da pessoa: a vontade de conversar, de sair, de se comunicar.
Esse tipo de demência é um primo do Alzheimer, com a diferença de que ataca diretamente a conectividade social do indivíduo. Ele se desliga da sua comunidade. Solta os fios da tomada da sua existência com os outros.
Antes pediatra expansivo, que sempre atendia a ligações de seus pacientes de madrugada, com inesgotável disposição, o pai de meu amigo passou a se isolar, a ter tremores, a sucumbir de desânimo até parar de caminhar.
Por muito tempo, Bruno dava banho nele e fazia a higiene, no revezamento com a irmã e a mãe. Luiz Antônio nunca esqueceu quem seu filho era; só teve um dia em que o confundiu e o chamou de pai. O que não era uma mentira. Ambos, no despojamento do amor, trocavam de papel.
Pela inspiração paterna, Bruno se formou em Medicina. E ainda recebeu o canudo de seu pai numa das suas últimas aparições públicas. Após a sua partida, tatuou "para sempre meu herói" em seu dorso.
Se estivesse vivo, Luiz completaria setenta anos em junho.
A questão é que a doença é hereditária e Bruno conta com 25% de chances de ter herdado. Existe um quarto de probabilidade de enfrentar o mesmo calvário, numa estatística assustadora, numa roleta-russa do DNA.
É uma dúvida que ele poderia sanar agora realizando um teste genético. Só que ele não quer. Recusa o alívio ou a confirmação fúnebre. Mesmo médico, mesmo com acesso a exames, prefere não saber. Prefere viver alheio ao resultado até os 50 anos, idade em que a demência começa a se manifestar.
Bruno optou por se igualar ao pai na inconsciência do diagnóstico. Seu desejo é seguir o destino sem uma data marcada para encerrar a sua viagem.
Eu não entendia o motivo e perguntei o porquê.
– Não me interessa morrer como meu pai, mas viver como ele. Lembrar quem ele era antes da doença, sua alegria e seu bom humor, como cantarolava ao se vestir, como brincava comigo despenteando o meu cabelo, logo depois de tê-lo penteado com afinco.
São escolhas pessoais. São princípios. Certamente, não dependemos da pequena amostra de líquido corporal ou tecido de Bruno para descobrir o quanto ele herdou o caráter do pai.