Ao considerar os municípios do Vale do Taquari e do norte do Estado, duas das regiões em que predominam as cidades afetadas pela chuvarada do início do mês, são 244 agroindústrias familiares das quais dependem mais de 78 mil pessoas, segundo dados da Secretaria de Desenvolvimento Rural do RS.
Nas 79 cidades com decreto de emergência, concentram-se 23,97% desses núcleos de produções — são 923 de um total de 3.850 estabelecimentos regulamentados no Estado.
Martinho Lazzari, economista e pesquisador do Departamento de Economia e Estatística (DEE), vinculado à Secretaria Estadual de Planejamento, destaca que, para cada R$ 1 da porteira para dentro, outros R$ 6,38 são agregados para fora no processo de agroindustrialização. A extensão desse valor na economia regional depende de cada modelo local de produção agropecuária.
Um dos mais difundidos é o integrado, cuja participação é ativa nas cadeias de grãos. Predomina no trigo, na soja e no milho. E também nos laticínios (leite e derivados), proteína animal (suínos, aves e bovinos), vitivinicultura (uva) e hortifrutigranjeiros.
De acordo com o Sistema Ocergs, são 96 as cooperativas ativas no Estado, com 278,1 mil associados e mais de 40 mil funcionários.
Aos 71 anos, Nelson Gattermann não sabe o que é exercer outro ofício que não seja a coleta de leite. Os 700 litros de capacidade na propriedade garantiam R$ 15 mil — a principal renda que contava para, junto da esposa, Edeli Maria, manter o pequeno pedaço de terra, onde também havia porcos, galinhas e gado. O dinheiro, assim como os animais, não estará lá em outubro.
— Talvez nunca mais volte — relata o produtor ao questionar se terá forças para retomar a atividade.
Na madrugada de 5 de setembro, o casal, a filha, o genro e a neta — um bebê de colo — esperaram por oito horas a chegada do resgate em cima do telhado, enquanto ouviam sons de animais arrastados pela correnteza e os estrondos que anunciavam a destruição do tambo, do galpão, do galinheiro e da casa onde viveram por 46 anos.
Com base no PIB Municipal, em 2019, a agropecuária foi responsável por um terço da atividade econômica em 268 dos 497 municípios gaúchos. Garantiu mais da metade da produção em 68 deles. Trata-se de uma característica, aponta o relatório do DEE, mais frequente entre aqueles com menos de 5 mil habitantes, caso de parte considerável do Vale do Taquari.
Atividades e rendas destruídas
À medida que as águas retrocedem dos pastos e das plantações, de volta às correntezas do Rio Taquari, mais perdas chegam à superfície. E, com elas, surge a profundidade dos danos que não se restringem à dinâmica local. Pelo contrário, têm potencial para afetar a produtividade da agropecuária gaúcha, ainda subjugada por três estiagens em quatro anos.
Somente os 36 municípios do Vale do Taquari — uma das regiões mais afetadas pela chuva e pelas enchentes — carregam 3,5% no PIB estadual. Quando o assunto é a indústria alimentícia, a participação sobe para 11,5%, indica o DEE.
Em sete cidades (Arvorezinha, Encantado, Estrela, Imigrante, Colinas, Cruzeiro do Sul e Nova Bréscia), estão 8,4% das matrizes de aves, ou seja, 15,1 milhões do total de 178,7 milhões de galináceos. Nos 79 munícipios com decreto de emergência já reconhecidos, são 46,9 milhões de frangos, o equivalente a 26,2% do total disponível no RS.
O produtor Fabiano Hauschild havia inaugurado há dois meses o novo aviário, em Estrela. No dia da enxurrada, ele terminava o carregamento programado de frangos. Mais de 20 mil estavam nos caminhões quando a água invadiu as estruturas e condenou outras 30,5 mil a uma cova aberta dias depois no topo da propriedade.
No mínimo, calcula Hauschild, serão dois meses para recolocar o maquinário em ação. A cada dia sem atividade, explica, R$ 1,5 mil deixam de entrar no caixa. É dinheiro que falta para o sustento e o reinvestimento na reconstrução, com financiamento de 10 anos em aberto.
Por que a situação afeta a atividade econômica gaúcha
- O que acontece no agronegócio reverbera mais forte no RS: a agropecuária representa cerca de 10% do PIB estadual; no Brasil, é inferior a 5%
- Quando considerados os setores correlatos, a representação sobe para 40% no RS e 27% no país
- A influência da agropecuária nas economias municipais e do Estado é superior à sugerida pelos números agregados segundo os setores de atividade econômica; por isso, sempre que há problema no campo, freia-se a migração e a geração de renda nos municípios
- As cidades integram-se às economias regionais com produtos e matérias-primas para a agroindústria. Os locais demandam um variado conjunto de bens e serviços agropecuários e não agropecuários
- Significa que a atividade primária interliga-se com setores “antes da porteira”, que fornecem insumos, máquinas e implementos, assistência técnica e financiamento. E também com os setores “depois da porteira”, responsáveis pelo processamento e pela distribuição da produção agropecuária
- Indiretamente, há ainda os impactos derivados do gasto do excedente econômico gerado
- Na agropecuária, isso se traduz em fonte de dinamismo para a indústria e para o setor de serviços local e regional
- Como consequência, quando a roda gira mais lenta para todos, faltam produtos, preços aumentam e a atividade reduz
- Os recentes acontecimentos no Vale do Taquari ampliam o problema da falta de sucessão no campo, uma situação que reduz a quantidade de produtores ano após ano. Economista e pesquisador do DEE, Martinho Lazzari não descarta efeitos no mercado de trabalho
O que a agropecuária do Estado precisa superar
Frango
As 79 cidades com decreto de emergência respondem por 26,2% dos frangos. O Vale do Taquari, por exemplo, abriga seis dos principais frigoríficos. Há problemas em maquinários e estruturas que afetam a produção. A Associação Gaúcha de Avicultura (Asgav) estima em R$ 230 milhões os prejuízos.
Na granja avícola Bom Frango (que atua com 57 integrados, com capacidade de alojamento de 750 mil aves por mês), houve danos em frigoríficos, na fábrica de ração, no secador e na armazenagem de grãos, gerando perdas avaliadas em R$ 7,8 milhões. Atualmente, as atividades ocorrem com menos da metade da capacidade.
Indústria
A capacidade da fábrica de produtos industrializados da Minuano, em Arroio do Meio, era de 2,3 mil toneladas antes da enchente e abrigava 380 funcionários. Com danos em equipamentos, estrutura e refrigeração, houve o descarte de produtos, insumos e matérias-primas.
Por mais de uma semana, os clientes e o mercado onde atua ficaram desabastecidos e sem gerar faturamento. Ainda não há estimativa do valor dos prejuízos, mas serão elevados, diz Margareth Schacht Herrmann, diretora Industrial da companhia.
Cooperativas
Na Languiru, há danos nos frigoríficos de suínos (Poço das Antas) e de aves (Westfália), na indústria de laticínios (Teutônia), na fábrica de rações (Estrela) e no posto de recebimento de grãos (Estrela). Dos 3.995 associados, 2.463 (61,7%) ficaram sem produção, em 40 municípios, a maioria do Vale do Taquari.
Mais de 80% dos funcionários tiveram perdas com as enchentes. O Sistema Ocergs aponta que a situação prejudica 96 cooperativas gaúchas de todos os ramos.
Leite
A Associação dos Criadores de Gado Holandês do RS (Gadolando) estima perdas de 500 mil litros e 10 mil hectares de pastagem. Com problemas de alimentação, segundo o Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados no RS (Sindilat-RS), o setor — que já enfrentava entraves na formação de preços e concorrência com o Mercosul — receberá carga adicional nos custos e, consequentemente, mais redução de renda, algo desestimulante para a atividade.
Números parciais da Emater-RS apontam em R$ 1 bilhão as perdas da cadeia produtiva em razão das chuvas nos 79 municípios com decreto de emergência já reconhecido. Estes municípios geraram R$ 2,1 bilhões, ou seja 23%, dos R$ 9,1 bilhões movimentados pelo segmento em 2022, segundo o IBGE.
Suínos
Há danos e paralisações em empresas de grande porte. As maiores, como BRF, JBS e Dália, têm produtores integrados ou cooperados com avarias, que ampliam questões relacionadas com a intensidade de produção das plantas, conforme o Sindicato das Indústrias de Produtos Suínos do RS (Sips), bem como trabalhadores afetados.
No atual cenário, boa parte do beneficiamento (abates e produção de embutidos) migrará para Santa Catarina, o que reduzirá as divisas gaúchas (tributos e circulação de valores) relativas à produção, projeta o presidente do Sips, Rogério Kerber.
Grãos
No final do plantio do milho e começo da floração do trigo, cooperativas que recebem os grãos em armazéns contabilizam as perdas junto aos associados. Muitas que entram com o financiamento de parte dessas safras já tiveram perdas de R$ 14 milhões com a estiagem. É o caso da Arla, de Lajeado, que atua também em Cruzeiro do Sul, Arroio do Meio, Encantado, Roca Sales, Estrela, Teutônia, Muçum e General Câmara. Tem 2 mil cooperados e R$ 20 milhões em aberto nas lavouras atingidas.