Mais abertas à inovação e sedentas por conhecimento, as mulheres estão consolidando seu espaço também no campo. Presentes na agricultura e na pecuária, a maioria de suas representantes tem Ensino Superior completo e participa de entidades do setor.
Essas são algumas das características do perfil de gestoras de propriedades rurais identificadas na pesquisa sobre mulheres na produção, encomendada pela Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). O estudo aponta, ainda, que elas são conectadas e comunicativas entre si. Esse padrão de comportamento ocorre, muitas vezes, para compensar a falta de conhecimento técnico sobre a atividade.
– As mulheres não veem como obrigatório ter todas as respostas, elas chamam consultores e vão atrás do conhecimento necessário por meio de cursos e treinamentos – comenta a socióloga Adélia Franceschini, diretora da Fran6, empresa responsável pela pesquisa.
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Consultor da Abag, José Luiz Tejon ressalta que as mulheres têm atributos importantes para o futuro do setor e que isso não tem a ver com a diminuição do homem, mas sim com o equilíbrio das características humanas de cada gênero.
– A mulher é um novo paradigma na gestão do agronegócio, que exige inovação e hoje clama por sustentabilidade. Mesmo sem conhecimento técnico, conseguem fazer coisas revolucionárias pois não têm vergonha de procurar quem sabe – avalia Tejon.
Preconceito ainda existe
Os avanços são consideráveis, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. O levantamento revela que 88% das pesquisadas são independentes financeiramente e que 14% é quem mais contribui nas despesas da família. Entretanto, indica também que 71% das entrevistadas já tiveram alguma experiência em que o fato de ser mulher foi uma barreira para ser ouvida ou ascender profissionalmente.
Um dos reflexos dessa repressão é que, embora desempenhem função importante na propriedade, em muitos casos ainda não se veem como protagonistas. A percepção foi verificada ao longo do estudo, que registrou a recusa de muitas produtoras. Ao responderem as perguntas, mesmo com perfil de gestoras, a maioria não se via como tal.
– As que se assumem gestoras são diferenciadas. É uma produtora que tem seus ideais e seus propósitos, e quer se ver representada – avalia Adélia.
Segundo a socióloga, as mulheres têm perfil gregário. Muitas trocam experiências e informações com vizinhos, pensam no tema sucessão rural e procuram a inclusão da família no negócio. Os homens também buscam a profissionalização, mas em geral sozinhos, por verem os sucessores como competidores.
A pesquisa identificou 1,3 mil mulheres responsáveis pela gestão ou produção agropecuária no país, sendo que apenas 310 aceitaram participar do estudo.
Cooperativas e participantes
A pesquisa Mulheres no Agronegócio Brasileiro aponta que 83% das entrevistadas participam de sindicatos, cooperativas e associações e que 60% têm Ensino Superior completo. Os dados mostram que as produtoras rurais estão dispostas a aprender e a buscar soluções, até mesmo nos casos em que não têm o conhecimento necessário sobre a atividade.
É o caso de Luisa Comin, 31 anos, de Espumoso, no norte do Estado.
Além de fazer parte da Cooperativa Tritícola de Espumoso (Cotriel) e da Cooperativa Agroindustrial (Coagrisol), de Mormaço, a produtora integra a diretoria do sindicato rural do município. Formada em Administração com pós-graduação em Gestão de Negócios, Luisa assumiu a gestão da Fazenda São Miguel em 2011, quando o pai Amarci adoeceu. Até então, só tinha trabalhado na cidade.
Apesar do interesse pelas atividades da família, que trabalha com pecuária e grãos, não tinha conhecimento técnico. O pai, conservador, não compartilhava informações e não dava abertura para as filhas.
Foi nessa época que começou a fazer um levantamento sobre a propriedade junto a cooperativas e agrônomos prestadores de serviço. Após convencer o pai a assinar uma procuração em seu nome, reestruturou o processo administrativo e financeiro da fazenda. O pai morreu em maio de 2014, aos 56 anos.
– Não tenho vergonha de contar que havia áreas em lugares que eu nem sabia – relata a produtora, que precisou mapear toda a atividade.
Hoje, é responsável pela gestão de 460 hectares – 300 hectares de soja, 71 de trigo, 40 de milho – e por 300 bovinos de corte confinados. As 120 vacas de cria das raças brahman e red angus ficam em uma área em Soledade. Para tocar a propriedade, Luisa conta com a ajuda de quatro funcionários.
– Não pude ver dificuldades, pois tive que encontrar uma solução – recorda a produtora ao avaliar o caminho percorrido.
Hoje, a única irmã, Laura, de 27 anos, e a mãe, Rosana, participam mais das decisões financeiras.
Resiliência favorece busca de soluções
Ao mesmo tempo em que reconhece que o machismo, ainda que sutil, é cultural, Luisa afirma não ter sofrido preconceito. A produtora acredita que a resiliência feminina é uma virtude que deve ser usada nos momentos em que é necessário administrar crises ou conflitos, já que as mulheres têm maior habilidade no trato social.
– Não senti barreiras, mas sim a expectativa das pessoas em relação ao meu trabalho. No início, a principal barreira foi a inexperiência técnica – lembra.
A produtora conta que neste processo de transição se tornou cooperativa, pois precisou buscar apoio de todas as formas. Para tanto, apostou nas parcerias. Após superar os primeiros obstáculos da sucessão precoce, conseguiu dar uma guinada e modernizar o manejo, colhendo bons resultados em pouco tempo.
Começou a fazer rotação de cultura e análise do solo, aumentando a produtividade das lavouras – a soja, por exemplo, passou da média de 50 sacas por hectare para 67 sacas por hectare. Uma das conquistas foi o convite da Cotriel para produzir semente de trigo. Também passou a fazer inseminação artificial e investiu no melhoramento genético do rebanho.
– Minha meta é crescer e atingir o profissionalismo – planeja.
Para compartilhar a sua experiência com outras mulheres, Luisa, que fez curso de psicanálise, organizou um grupo formado por 15 produtoras da região. Em encontros mensais, falam sobre temas diversos. O objetivo é ajudá-las a desenvolver a percepção de si próprias, além de estimular o empoderamento.
Elas não fogem à luta
O engajamento por meio da atuação sindical é uma das portas que as mulheres encontram para trilhar seu caminho na zona rural - 57% integram sindicatos rurais, 39%, cooperativas, e 33% participam de associações de produtores. Foi assim com a produtora Mara Mattes, de Estrela, que há cinco anos participa das atividades da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag) no município.
Desde 2012, ela é responsável pela ordenha de oito vacas em lactação na propriedade familiar onde o marido cria suínos. Em área de seis hectares, o casal também planta milho, cana, aipim e pastagem. A produção de leite foi uma iniciativa de Mara para incrementar a renda. A atividade exige dedicação integral já que são duas ordenhas diárias, que resultam na produção de 180 litros.
– Gosto de fazer o que faço e defender essa classe, para que tenhamos vez e voz. A gente luta por igualdade e autonomia – frisa a produtora.
Embora tenha apenas o primeiro grau incompleto, Mara buscou conhecimento técnico para desenvolver a atividade. Entre as capacitações das quais participou, destaca os cursos de tecnologia para produção de leite, de derivados, de embutidos e defumados, além de processamento de hortaliças, de frutas e de peixes.
A produtora também fez qualificação em inclusão digital e gestão - Mara participou do programa Com Licença Vou à Luta, do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural do Rio Grande do Sul (Senar-RS). O objetivo é se especializar na preparação de derivados para agregar valor à matéria-prima e comercializar os próprios produtos em feiras de produtores.
Para ampliar as conquistas femininas, a agricultora familiar considera que ainda falta avançar em políticas públicas para as mulheres. Outro pleito é a garantia de renda que possibilite a permanência de produtoras, como ela, no campo. E Mara não fica de braços cruzados, à espera das mudanças. Nesta eleição, ela concorreu a vereadora e alcançou 104 votos.
– Nossa luta continua e está apenas começando – avalia a produtora.
Produtora aposta na filha como sucessora
A filha mais nova Hortênsia, de 14 anos, gosta de se envolver nas atividades e ajuda a tocar o tambo. É a esperança de Mara para a sucessão familiar. As duas filhas mais velhas, Fernanda, de 25 anos, e Marina, de 21, optaram por não ficar na propriedade.
– Ajudo a tocar as vacas e a tratar os terneiros – relata Hortênsia, que ainda não decidiu se vai cursar faculdade de Agronomia ou Veterinária.
Preocupada com a saúde da família e dos animais, Mara optou por investir na criação de vacas da raça jersey, por serem mais fáceis de manejar sem o uso de medicamentos. Seguindo recomendações da Emater, ela trata os bovinos com fitoterápicos.
Busca pelo empoderamento
Há 16 anos à frente da Comissão de Produtoras Rurais da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Zênia Aranha da Silveira percebe uma grande modificação no papel das mulheres. Antes, avalia a dirigente, elas não tinham o conhecimento e a informação que detêm hoje a respeito do negócio.
– As mulheres estão em alta no agronegócio. Elas têm sido respeitadas porque, quando têm algum objetivo, elas vão atrás – afirma Zênia.
Coordenadora estadual das mulheres trabalhadoras rurais da Fetag, Lérida Pivoto Pavanelo acredita que "ainda precisamos caminhar e insistir por igualdade". Um dos indícios é a escassa presença feminina na diretoria dos sindicatos. De um total de 350, aproximadamente cem atendem a cota dos 30% de mulheres.
– O grande desafio ainda é querer fazer parte, estar junto, dar opinião e ter vontade – afirma Lérida, lembrando que, infelizmente, algumas produtoras familiares ainda estão na invisibilidade pelo domínio cultural masculino.
Na agricultura familiar, o empoderamento é um desafio ainda maior. Coordenadora da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul (Fetraf-RS), Cleonice Back relata que muitas mulheres fazem a gestão compartilhada da propriedade, mas não têm acesso ao recurso gerado por meio da atividade rural.
– A triste realidade do campo é que muitas mulheres só tem autonomia financeira quando chega a aposentadoria – diz a dirigente, lembrando que há dez anos, elas tinham o CPF do marido no documento de identidade.
Maioria em cursos de qualificação
Um dos indicativos da maior participação feminina no campo é que, nos últimos 10 anos, o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural do Rio Grande do Sul (Senar-RS) registra uma inversão de gênero no público dos cursos. Em 2015, pelo sétimo ano consecutivo, as mulheres são maioria.
– As produtoras vêm se qualificando e envolvendo a família – avalia o superintendente do Senar-RS, Gilmar Tietböhl, lembrando que as mulheres demonstram maior preocupação com a sucessão da propriedade.
Essa expansão também foi impulsionada pelo Programa Com Licença, Vou à Luta, que desde 2014 oferece capacitação em gestão para produtoras rurais. São cinco módulos: empreendedorismo, planejamento financeiro, legislação, liderança e relações interpessoais. Em quase três anos, foram qualificadas mais de 3,1 mil mulheres.