Curiosos, dóceis e sociáveis. Esses são os botos-de-Lahille (Tursiops gephyreus), mamíferos marinhos que frequentam o litoral do Rio Grande do Sul e acabaram de ser reconhecidos como ameaçados de extinção pelo Ministério do Meio Ambiente, em portaria publicada no dia 7 de junho. É a primeira vez que entram oficialmente nessa lista de risco, atualizada a cada cinco anos pelo governo federal.
Animais que ficam restritos ao sul da América do Sul, a maioria deles está na costa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina, embora também frequentem o Uruguai e a Argentina. São populares na Barra do Rio Tramandaí, no Litoral Norte, onde ajudam os pescadores a capturar a tainha, atração turística que não causa qualquer dano ao mamífero, e no Litoral Sul, entre a Lagoa dos Patos, a Praia do Cassino e a Praia do Mar Grosso. Sua população total é estimada em cerca de 600 indivíduos.
Na lista do Ministério do Meio Ambiente, entraram na categoria "em perigo" de extinção, que vem antes de "criticamente em perigo". Depois, há a classificação "provavelmente extinta". Esse reconhecimento ocorreu após uma avaliação realizada em 2018 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) reunindo diversos pesquisadores que entenderam que havia chegado o momento de alertar para o risco de os bichos desaparecerem.
O que os deixa ameaçados é que, por serem costeiros em vez de oceânicos, ficam submetidos aos impactos da vida urbana, como explica a bióloga Fábia Luna, coordenadora do Centro de Mamíferos Aquáticos do ICMBio.
— Eles ficam à mercê do atropelamento de veículos aquáticos, do lixo, da pesca, do barulho sonoro das cidades. Por isso, avaliamos que era importante colocá-los como espécie ameaçada. Assim, conseguimos traçar ações estratégicas para a conservação desses animais e criar ações que possam minimizar o impacto de erguer empreendimentos onde eles frequentam — diz.
Grande defensor dos botos-de-Lahille, o biólogo Pedro Fruet, coordenador do Laboratório de Mamíferos Marinhos da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), fica dividido com o reconhecimento do governo federal. Por um lado, é um sinal de que a espécie, a partir de agora, terá um olhar mais cauteloso da sociedade. Por outro, torna urgente que algo seja feito para que não deixe de existir.
— Temos obrigação moral de não deixarmos uma espécie se extinguir. É um compromisso com gerações futuras. Além disso, o boto-de-Lahille é um predador de topo, com papel fundamental na regulação do equilíbrio do sistema costeiro. Se extinto, para de exercer um papel importante. Qual seria o efeito do boto desaparecer? — questiona o pesquisador, que também coordena o projeto Gephyreus, dedicado a estudar esses botos e financiado pela Fundação Grupo Boticário.
Uma das preocupações quanto à existência dos botos-de-Lahille no litoral gaúcho é, de acordo com biólogos e outros pesquisadores, o projeto de uma nova ponte que liga Tramandaí a Imbé. Foi proposta pelo município de Imbé e elaborada para ser construída mais próxima à Barra do Rio Tramandaí do que a atual passarela Giuseppe Garibaldi. Mas é justamente ali que os botos-de-Lahille interagem com os pescadores na captura da tainha, e também onde descansam, se reproduzem e criam seus filhotes.
Na avaliação do biólogo Ignacio Moreno, professor de Biologia Marinha da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar), o reconhecimento do governo federal de que os botos-de-Lahille podem desaparecer vai tornar mais difícil a construção de qualquer obra que coloque em risco a permanência dos animais.
— Essa ponte prevê a utilização de pilares de grande porte no meio do rio e todo o barulho dos carros será transmitido para a água através desses pilares. Há estudos que mostram que pontes construídas onde os animais se alimentam fazem com que eles abandonem o local. Não somos contra a ponte, mas queremos que sejam feitos os estudos e que esse projeto seja conversado com a sociedade. Vale a pena construir uma ponte num local onde há espécie ameaçada de extinção? Quando há o reconhecimento de uma espécie ameaçada, a situação muda — argumenta.
Ajudantes de pesca
Segundo Moreno, são 13 botos que marcam presença quase diária na Barra do Rio Tramandaí, onde encurralam os cardumes de tainhas e fazem um sinal para os pescadores, chamado "batida de cabeça", indicando que a rede pode ser lançada. Habituados com essa comunicação, os pescadores já sabem como pegar o peixe sem machucar os ajudantes marinhos.
Esses botos são curiosos e dóceis, pois se aproximam das pessoas sem medo. Nós precisamos nos desenvolver e coexistir com esses animais.
PEDRO FRUET, BIÓLOGO E DEFENSOR DOS BOTOS-DE-LAHILLE
Enquanto isso, moradores e turistas sentam-se no calçadão de Imbé para assistir à troca entre humanos e animais. É um espetáculo que Moreno deseja ver tombado como patrimônio do país por meio do projeto Botos da Barra, também financiado pela Fundação Grupo Boticário.
— Em que lugar do mundo se imagina que há uma tainha capturada junto com o boto? Imagina que legal um turismo de base comunitária, sustentável, onde o turista vai para o restaurante do nosso Litoral Norte e come uma tainha que foi pescada com a ajuda do boto — exalta o professor.
Segundo Fruet, defender a permanência dos botos não é levantar uma bandeira pela preservação da natureza em detrimento do progresso social. É preciso saber investir no crescimento urbano sem colocar em risco os animais, avalia o biólogo.
— Dá para fazer a ponte, mas temos que considerar os riscos, propor uma obra com menos risco para as espécies. Esses botos são curiosos e dóceis, pois se aproximam das pessoas sem medo. Nós precisamos nos desenvolver e coexistir com esses animais — diz o biólogo.
Questionado, o prefeito de Imbé, Luis Henrique Vedovato, disse que não sabia que os botos-de-Lahille foram reconhecidos como ameaçados de extinção. Em nota encaminhada à reportagem de GZH, ele informou que a ponte, caso seja construída, não causará prejuízos.
"O projeto da nova ponte será pensado de forma a evitar qualquer prejuízo a esta espécie e a outras espécies da fauna local, e também com menor dano a natureza. Estamos seguindo à risca a legislação ambiental. Os botos são um símbolo da nossa cidade", escreveu.
Espécie ou subespécie
Embora o Ministério do Meio Ambiente tenha reconhecido os botos-de-Lahille como espécie, há uma ampla discussão entre pesquisadores de mamíferos marinhos a respeito da validade da nomenclatura. Isso porque parte dos estudiosos entende que esses bichos não são uma espécie, mas uma subespécie do golfinho-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus).
Apesar do debate, o que vale é que os animais, agora, estão com um alerta sobre si, diz o professor Moreno:
— Não existe consenso se o boto-de-Lahille é uma espécie ou subespécie, mas existe consenso que é uma linhagem diferente, que esse bicho existe e merece ser conservado. São diferentes do golfinho-nariz-de-garrafa e cooperam com seres humanos de forma única no planeta - diz.
Conheça os botos-de-Lahille:
- Os botos-de-Lahille foram descritos em 1908 pelo naturalista francês Fernando de Lahille, radicado na Argentina
- Por muitos anos, foram confundidos com o golfinho-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus)
- Os botos-de-Lahille podem atingir até 3,8 metros de comprimento e pesar mais de 500kg
- Sua coloração é cinza-escura e vai clareando em direção ao ventre
- Possuem nadadeira dorsal alta, posicionada no meio do corpo
- O rosto (focinho) é curto
- São animais sociáveis, que geralmente formam grupos de quatro indivíduos
- Vivem cerca de 25 anos, mas há registro de fêmeas que passaram dos 40 anos
- Alimentam-se de peixes, especialmente tainha e corvina