Por Luiz Carlos Gomes Filho
Head de Direito Digital do RMMG Advogados
Corridas eleitorais sempre desafiaram o limite entre a persuasão e a manipulação. As eleições de 2015 e 2016 expuseram um risco até então pouco conhecido envolvendo a classificação algorítmica de conteúdo. Diferentemente das inserções em mídias tradicionais e palanques, as redes sociais passaram a entregar esferas privadas e praticamente invisíveis aos olhos da Justiça Eleitoral. Pior: o conteúdo poderia ser direcionado com grande acurácia, de acordo com as preferências, hábitos e perfis de possíveis eleitores.
Se as inquietações em eleições anteriores se voltaram à proteção de dados pessoais, notícias falsas e disparos massificados de mensagens, agora o desafio é outro. Pela primeira vez em um ciclo eleitoral, estamos vivendo a onda da inteligência artificial (IA) generativa: uma tecnologia que permite a fabricação de conteúdo audiovisual a partir de uma simples linha de comando.
Em fevereiro de 2023, o primeiro caso de grande repercussão: às vésperas da votação, o candidato à prefeitura de Chicago (EUA) Paul Vallas foi alvo de uma produção audiovisual falsa (deepfake), onde aparecia aprovando casos de brutalidade policial. Vallas perdeu a eleição, e talvez nunca seja possível determinar o impacto real do vídeo circulado pelo X (ex-Twitter). Em janeiro deste ano, eleitores democratas de New Hampshire receberam ligações automáticas com uma imitação de Joe Biden desincentivando o comparecimento à votação.
O uso da IA já atingiu um point of no return. Durante as prévias norte-americanas, vem sendo divulgado o uso contínuo de IA para análise de padrões de votação, hábitos, e elaboração de discursos, por exemplo. Ainda não é possível prever a extensão em que a tecnologia será utilizada nas eleições municipais brasileiras, mas, considerando o alto risco e potencial lesivo, esperava-se que o Congresso Nacional tivesse uma resposta legislativa a tempo. Não foi o caso. Ainda assim, apesar da inexistência de regulamentação específica sobre IA ou fake news, vale registrar que o ordenamento brasileiro oferece ferramentas, civis e penais, capazes de conferir maior segurança e integridade ao pleito. Soma-se a elas a possibilidade da publicação de regramentos específicos para o contexto eleitoral.
Em 27 de fevereiro, o Tribunal Superior Eleitoral aprovou alterações à Resolução 23.610/2019 com o objetivo de disciplinar o uso da IA – especialmente a generativa. Nas eleições de 2024, qualquer conteúdo resultante do emprego de IA em propaganda eleitoral deverá ser identificado e rotulado. No mesmo caminho, o emprego de chatbots para simular conversas com candidatos ou outras pessoas reais, assim como a utilização de deepfakes de qualquer natureza, são possibilidades vedadas em absoluto. Vale dizer que, caracterizado abuso no uso dos meios de comunicação, a candidatura pode ser posta em xeque.
Para garantir uma corrida justa e o livre convencimento, é preciso indicar que a Justiça Eleitoral estará atenta, e estabelecer estes caminhos de responsabilização. Veículos tradicionais e profissionais de imprensa estão sujeitos a uma ampla gama de regulamentações. A questão é que, em menos de uma década – um espaço de tempo curtíssimo quando falamos em movimentos legislativos –, as redes sociais tomaram um espaço ocupado há anos pelo setor de comunicação, potencializando o alcance das mensagens, mas abrindo espaço para a circulação massiva e instantânea de conteúdo em canais onde a credibilidade e a veracidade do conteúdo que circula ainda são um problema.
Voltando ao acontecimento envolvendo Joe Biden em New Hampshire, a Federal Communications Commission (instituição semelhante à Anatel) decidiu por classificar as chamadas como “artificiais”, e enquadrá-las em uma Resolução de 1991 (TCPA) contra ligações indesejadas e pré-gravadas, o que possibilita a aplicação de multas e bloqueios contra infratores e companhias telefônicas. A lição que fica é que, por mais que a tecnologia seja nova, as consequências e os problemas raramente são. O trabalho conjunto e a comunicação constante entre a Justiça Eleitoral e agências reguladoras é uma via necessária.
Ao mesmo tempo, as resoluções do TSE são uma resposta acertada, válida e eficiente. É preciso passar a mensagem de que a Justiça Eleitoral está atenta às mudanças sociais. Enquanto aguardamos uma regulamentação mais robusta e abrangente, utilizemos aquilo que o ser humano tem de mais singular para defender a democracia: a sua inteligência e experiência histórica.