Iara Lemos (*)
Dificilmente você passou os últimos meses imune às notícias em relação ao ChatGPT, os textos produzidos pelo programa e as cantadas que o chatbot arriscou em alguns curiosos mundo afora. Para muito além de preocupações que versam sobre a possibilidade de você perder seu próximo relacionamento para um bot, é preciso considerar que as discussões das potencialidades do chatbot lançaram luz a uma série de mudanças que mergulham a sociedade em um filme de ficção científica. O avanço da Inteligência Artificial (AI) é um caminho sem volta, que já tem e terá imensuráveis conquistas no futuro, mas que também tende a ampliar o abismo social em muitos países, como é o caso que se desenha no Brasil. E é sobre esse arcabouço que devemos deter parte dos nossos debates.
No país em que os investimentos em ciência e tecnologia despencaram quase 40% nos últimos oito anos, de acordo com levantamentos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o avanço tecnológico resulta em pesos inversamente proporcionais na balança social. Quanto menos se investe em ciência e tecnologia, maior é a lacuna que se abre na sociedade em relação a que público ela trará avanços.
O debate aqui não é apenas sobre quem terá condições de substituir a cada ano o celular por um de tecnologia mais avançada e, com isso, fazer perguntas ao ChatGPT, ou pedir que ele escreva seus textos. Mexe com a vida de cada um de nós. Vamos às questões práticas. Quanto menos se investe em pesquisas e tecnologia, menos condições o país tem de encontrar respostas rápidas para crises sanitárias como as que vivemos durante a pandemia da Covid-19, que deixou um rastro de quase 700 mil mortos.
Logo no início da pandemia, o Colegiado de Inteligência Artificial da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), organismo internacional que reúne países com as economias mais avançadas do mundo (e do qual o Brasil quer, mas ainda não faz parte), divulgou formas de como a AI poderia auxiliar nas demandas emergências de combate ao vírus. Uma delas era usar a Inteligência Artificial para auxiliar na prevenção ou na redução da propagação da doença por meio do monitoramento e rastreamento de contatos da população. O governo brasileiro, que renegou os investimentos em tecnologia, não tinha ferramentas disponíveis para esse sistema, que foi usado imediatamente na Inglaterra. É aqui que a tecnologia se funde aos direitos humanos. Quem tem mais recursos, tem mais acesso à tecnologia e, com isso, mais chance de se manter vivo. Parece cruel, mas é parte da realidade da AI.
O Brasil ainda está tão atrasado no que diz respeito ao uso da Inteligência Artificial, que nem mesmo há legislação que traga balizas ao tema. Há mais de seis meses, está parado no Senado o PL 21/2020, conhecido como Marco da Inteligência Artificial. A proposta já aprovada na Câmara, chegou à Casa revisora com uma série de lacunas prejudiciais à própria implementação da AI no Brasil. O problema é que os parlamentares que debateram o projeto não conhecem o tema à fundo. Não sabem na prática as atribuições da Inteligência Artificial. Tanto que, quando o projeto chegou a plenário, houve quem defendesse a colocação de um robô no Salão Verde para alertar que o Marco da Inteligência Artificial estaria sendo votado. Detalhe: robôs não representam o que o projeto determina. Era preciso que os parlamentares entendessem as ingerências do machine learning na sociedade, e de que forma a interferência humana faz com que a IA aconteça. Na inteligência artificial é tudo uma questão matemática, de algoritmos que analisam dados. Os seus dados, aqueles mesmo que são colocados em um cadastro de quando você efetua uma compra.
Suas informações são utilizadas por máquinas. É o machine learning que permite que os sistemas prevejam e classifiquem os dados. Assim, quando você vai, por acaso, abrir sua rede social, depara-se com sugestões na linha do que você comprou. Porque suas preferências já foram analisadas, por meio de máquinas que adquirem conhecimento e experiência em um sistema chamado cognição. Parece complexo, mas é acima de tudo delicado, uma vez que é o homem que mexe em tudo isso. Dados valem dinheiro, e dinheiro faz a Inteligência Artificial. Demanda atenção, que o Parlamento Brasileiro, ainda tão vulnerável ao lobby das grandes empresas de tecnologia, não compreendeu. Enquanto isso, parte da população segue acreditando que a grande revolução da AI é o ChatGPT. O debate, contudo, precisa ir muito além do chatbot.
(*) Jornalista, especialista em Inteligência Artificial (Atlantic Council) e História Política (UFSM), participante do colegiado de Inteligência Artificial da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)