Pense nas empresas que mudaram a forma como você trabalha, se desloca, se diverte, compra, se comunica, procura emprego ou planeja férias. Raras exceções, elas têm algo em comum: nasceram ou mantêm unidades de desenvolvimento em um trecho ao sul da Baía de San Francisco, na Califórnia, Estados Unidos.
O Vale do Silício compreende 16 cidades que agrupam centenas de empresas de alta tecnologia. É nessa região que estão Microsoft, Apple, Uber, Netflix, Amazon, Facebook, LinkedIn, TripAdvisor e outras companhias que têm reinventado o jeito como as pessoas vivem.
GaúchaZH esteve no Vale do Silício no início do mês novembro para acompanhar o evento QuickBooks Connect 2019, promovido pela empresa de tecnologia Intuit, na cidade de San Jose — e viu de perto por que startups da região conseguem desenvolver softwares, aplicativos, equipamentos e ferramentas digitais (literalmente) revolucionários.
Um dos traços mais marcantes é a gana em conhecer a fundo o consumidor e os problemas que enfrenta no seu dia a dia — e então usar estas informações para criar soluções inovadoras. Além de robustos setores de análise de mercado, as startups californianas atribuem a seus funcionários o compromisso de entenderem as dores dos clientes.
Na Intuit, que fornece ferramentas digitais para ajudar contadores e pequenos empresários a organizarem suas finanças, todos os 9 mil funcionários devem passar uma semana por mês ao lado de clientes. Vale propor atividades práticas, fazer reuniões ou simplesmente observar a rotina no escritório. A regra se aplica a todos colaboradores: desenvolvedores, vendedores, assistentes técnicos e quadro administrativo.
— É uma questão de empatia. Precisamos entender o consumidor, para que nossos produtos continuem sendo cada vez mais relevantes — explica Lars Leber, diretor da Intuit no Brasil.
A ideia do programa, chamado Customer Driven Innovation, não é tentar vender novos produtos, mas observar como o cliente lida com suas tarefas financeiras, quais funcionalidades das ferramentas utiliza e quais novas opções ambiciona.
— São informações que ajudam todos os funcionários a pensarem com a cabeça dos consumidores — acrescenta Leber.
Bandeiras populares
Outra característica que une as startups do Vale do Silício é o alinhamento às tendências mundiais de consumo, principalmente entre os jovens. As companhias costumam remar junto com a maré e aproveitam bandeiras como sustentabilidade, transparência, praticidade e colaboração para encaixar seus serviços. Um dos casos mais expoentes é o Uber, criado em San Francisco, cujo aplicativo aproveita o espaço ocioso em automóveis para gerar renda ao motorista e conforto aos passageiros.
Pelo lado da praticidade, um bom exemplo é a Amazon, com duas subsidiárias no Vale do Silício. A Alexa, assistente virtual da empresa, é apresentada como modelo eficiente para conhecer o consumidor e personalizar a oferta de serviços. Se um usuário precisa de um par de pilhas, simplesmente abre o dispositivo por comando de voz e pede pra que Alexa faça a compra e providencie a entrega.
— Os jovens são muito familiarizados com este tipo de tecnologia. Nos últimos 12 meses, 43% dos milleniums compraram por comando de voz. Portanto, o serviço tem tudo a ver com o comportamento do consumidor — resumiu Michael McQueen, um dos mais renomados pesquisadores de tendências do mundo, em palestra durante o QuickBooks Connect.
Uma das estratégias das empresas tecnológicas é focar nas lacunas deixadas por negócios tradicionais. As startups identificam defasagens e imperfeições e oferecem soluções que rapidamente conquistam os clientes. O especialista citou o caso de fintechs que estão oferecendo caminhos menos onerosos e mais práticos para que clientes façam transferências em moedas estrangeiras.
— É algo que os bancos poderiam ter feito, mas não fizeram — reforça.
Negócios sustentáveis
Mesmo empresas nascidas fora do Vale do Silício colocam seus esforços de venda na região para testar a tecnologia e a aderência do mercado aos produtos. Criada em Nova York em 2009, a Rent The Runway nasceu como um e-commerce de aluguel de roupas de grife e, posteriormente, instalou lojas físicas nos Estados Unidos — duas das cinco atuais estão na Califórnia.
O serviço oferece assinaturas mensais ou alugueis individuais de itens como vestidos, macacões, brincos, anéis e bolsas. No início deste ano, arrecadou US$ 125 milhões em investimento para melhorar a plataforma e expandir as categorias de produtos.
Para conquistar um público mais atento à sustentabilidade, a Rent se apresenta como um contraponto ao consumismo e ao fast fashion (moda rápida, um padrão de produção e consumo no qual os produtos são fabricados, consumidos e descartados rapidamente). O negócio cresce tão depressa que, em setembro, a empresa anunciou que deixou de receber novas assinaturas, até que conseguisse organizar a atual demanda.
— O conceito do orgulho da posse está mudando. Isso ocorre com carros, imóveis e até carreira. No caso das roupas para ocasiões como casamentos ou formaturas, as pessoas compram uma peça para usarem quatro ou cinco vezes, e isso gera um ciclo de poluição e consumismo que não é sustentável — defende Jennifer Hyman, uma das fundadoras da empresa.
Estratégias das empresas do Vale do Silício para criarem produtos revolucionários
- Atenção ao cliente: o que virou um chavão para muitas empresas é seguido à risca pelas companhias californianas. Em geral, elas incorporam métodos para observar o comportamento de usuários e pensar em soluções que resolvam problemas mais específicos. A Intuit, por exemplo, incentiva todos os seus funcionários a passarem pelo menos uma semana por mês reunidos com clientes para observar como eles lidam com suas tarefas diárias — e se as ferramentas da empresa estão efetivamente auxiliando.
- Diversidade: é mais do que uma bandeira pela igualdade: trata-se de uma ferramenta poderosa para desenvolver produtos que conquistem clientes massivamente. O Google mantém em sua sede, em Mountain View, funcionários vindos de 80% dos países que formam as Nações Unidas. Indianos, brasileiros, norte-americanos, mexicanos e australianos podem trabalhar lado a lado em novas ferramentas. A lógica é que muitos olhares poderão ajudar a esculpir produtos que agradem consumidores de gostos e contextos sociais diferentes, multiplicando as vendas.
- Atenção às tendências: os gostos dos consumidores estão mudando, e saber quais aspectos os levam a comprar é essencial. Isso significa assumir posições cada vez mais populares (em particular, entre os jovens), como respeito ao meio ambiente, transparência e colaboração. É neste tripé que Jennifer Fleiss e Jennifer Hyman se apoiaram para criar a startup Rent The Runway, com duas lojas na Califórnia para aluguel de acessórios e roupas de grife. A empresa virou um ícone na luta contra o consumismo.
- Celeiro de cérebros: ajuda muito ter por perto universidades que são referências em tecnologia e formação de mão de obra altamente qualificada. No Vale do Silício, o principal expoente é a Universidade Stanford, na cidade de Palo Alto. São cerca de 16 mil estudantes matriculados, sendo que mais de 50% fazem pós-graduação. Seus professores e ex-alunos já ganharam 21 prêmios Nobel e, no primeiro semestre deste ano, 19 deles ainda davam aulas na instituição. Entre os negócios que nasceram em Stanford, estão eBay, Yahoo, LinkedIn, Hewlett Packard Enterprise (HPE), Google e Nike.
- Tecnologia como meio: muitas startups no mundo todo tentam incorporar a tecnologia de ponta ao seu serviço, ainda que não tenham certeza sobre como estas ferramentas ajudarão no desenvolvimento de seus produtos. Isso pode drenar os recursos e tirar o foco da empresa. Este é um erro que as companhias da Califórnia tentam evitar. Os empresários pensam antes no problema que querem resolver e apenas depois procuram, no universo de blockchain, inteligência artificial, armazenagem em nuvem, Internet das Coisas ou chatboots, qual a melhor tecnologia para alcançar esta meta.
- Ambiente futurista: trazer o que há de mais moderno para o ambiente de trabalho ajuda a atrair jovens talentos e inspira a cultura da inovação. Na sede da Intuit, em San Jose, pequenos robôs guiados por GPS percorrem os jardins e os 20 prédios levando entregas, e os funcionários podem fazer pedidos e acompanhar a trajetória via aplicativo. O Apple Park — inaugurado em 2017 e tido como o último projeto de Steve Jobs —, QG da empresa em Cupertino, tem a energia captada por painéis solares e biocombustíveis, e a arquitetura do prédio, em formato oval, é feita em vidro e lembra as telas de smartphones.
* O repórter viajou a San Jose a convite da Intuit/QuickBooks.