
O KidGuard é um aplicativo de celular que se anuncia como uma ferramenta para controlar as crianças, mas também promoveu sua vigilância para outros fins e exibe posts em seu blog com títulos no estilo "Como ler as mensagens excluídas no telefone de seu amor".
Um aplicativo semelhante, o mSpy, aconselha as mulheres a monitorarem secretamente seus maridos. Um terceiro, o Spyzie, exibe anúncios no Google ao lado de resultados para termos de busca como "acesse iPhone namorada traidora".
Nos últimos anos, conforme foram se multiplicando as ferramentas digitais que coletam dados do celular para controlar crianças, amigos ou aparelhos perdidos, o mesmo aconteceu com as opções para aqueles que abusam da tecnologia para seguir alguém sem consentimento.
Mais de 200 aplicativos e serviços oferecem aos novos espiões uma variedade de capacidades, desde o básico, como o rastreamento da localização e a leitura de mensagens, até a gravação secreta de um vídeo, de acordo com um novo estudo acadêmico. Cerca de 20 serviços foram divulgados como ferramentas de vigilância para espionar parceiros, de acordo com pesquisadores e reportagens do New York Times. A maioria exige o acesso ao telefone das vítimas ou o conhecimento de suas senhas, coisas comuns em relacionamentos familiares.
O monitoramento digital de um cônjuge ou parceiro pode constituir perseguição, escuta ou hacking ilegais, mas as leis e quem as aplica têm dificuldade de acompanhar as mudanças tecnológicas, embora a espionagem seja um sinal de alerta de tentativa de homicídio em casos de violência doméstica.
— Não compreendemos e minimizamos esse abuso. As pessoas pensam que se não houver uma proximidade física imediata com a vítima, não há muito perigo — disse Erica Olsen, da Rede Nacional para Acabar com a Violência Doméstica, dos EUA.
As estatísticas sobre a perseguição eletrônica são difíceis de encontrar porque as vítimas podem não saber que estão sendo vigiadas ou não relatam o episódio. E mesmo que achem que estão sendo seguidas, o software oculto pode dificultar a confirmação.
Mas o vazamento de dados de duas empresas de vigilância, no ano passado – revelando contas de mais de 100 mil usuários, de acordo com o site da tecnologia Motherboard – deu uma ideia da escala. A empresa do aplicativo de monitoramento mSpy disse ao New York Times que vendeu assinaturas para mais de 27 mil usuários nos Estados Unidos no primeiro trimestre deste ano.
De acordo com dados publicados no ano passado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças, 27% das mulheres e 11% dos homens nos EUA, em algum momento, passaram por perseguição ou violência sexual ou física infligidas por um parceiro íntimo, o que gera efeitos significativos. Embora os números abrangentes não estejam disponíveis em casos de abuso doméstico envolvendo espionagem digital nos Estados Unidos, uma pequena pesquisa publicada na Austrália, em 2016, mostrou que 17% das vítimas foram rastreados via GPS, inclusive com a utilização desses aplicativos.
Em um caso na Flórida, um homem chamado Luis Toledo instalou o aplicativo SMS Tracker no telefone de sua esposa, em 2013, porque suspeitava que ela estivesse tendo um caso.
— Ele disse que conseguia ver mensagens de texto e fotos que sua esposa enviava e recebia de outros — contou o Sargento A.J. Pagliari, do escritório do xerife do Condado de Volusia.
Em janeiro deste ano, Toledo foi sentenciado a três prisões perpétuas consecutivas depois de ser condenado pela morte da esposa, Yessenia Suarez, e dos dois filhos dela. Pagliari conta que Toledo lhe disse ter instalado o aplicativo vários dias antes da morte:
— Com o programa, Toledo conseguiu confirmar sua suspeita.
Representantes do SMS Tracker, feito pela Gizmoquip, com sede em Dallas, não quiseram falar sobre o papel do aplicativo no caso. Um comentário recente na loja Google Play sobre o SMS Tracker informa aos possíveis usuários: "Eu o recomendo caso você desconfie que seu amor o está traindo".
Uma abertura para o abuso
Não há nenhuma lei federal contra o rastreamento geográfico, mas esse tipo de monitoramento pode violar leis estaduais dos EUA. Espionar as comunicações alheias pode infringir estatutos de escutas ou de crime informático. E a venda de ferramentas ilegais de escuta é crime federal.
Porém, não é ilegal vender ou usar um aplicativo para seguir os filhos ou seu próprio celular. E pode ser difícil dizer se as pessoas que estão sendo vigiadas deram seu consentimento, porque são frequentemente coagidas a usar tais aplicativos.
Em Everson, Washington, por exemplo, Brooks Owen Laughlin foi acusado de espancar a esposa e de usar um aplicativo normalmente destinado para fins benignos, o Find My iPhone, para controlar seus movimentos.
— Se ela o desligasse, ele ligava ou enviava uma mensagem: "Por que você o desligou? O que está fazendo?" — disse em uma entrevista Daniel MacPhee, chefe do departamento de polícia de Everson.
Em abril, Laughlin declarou-se inocente das acusações de agressão, assédio e perseguição.
A ambiguidade técnica e jurídica criou um ambiente em que as ferramentas são comercializadas tanto para usos legais como ilegais, sem repercussão aparente.
— Definitivamente, há fabricantes de aplicativos que são cúmplices, procurando esses clientes e anunciando esse tipo de uso. Eles tentam ser discretos, mas é o que estão fazendo — disse Periwinkle Doerfler, aluno de doutorado na Universidade de Nova York e autor de um estudo sobre aplicativos.
Pesquisadoras da Universidade de Nova York, Cornell e Cornell Tech, contataram o suporte ao cliente de nove empresas com serviços de rastreamento. Disseram que queriam secretamente rastrear seus maridos, e apenas uma empresa, a TeenSafe, recusou-se a ajudar.
Um aplicativo basicamente destinado aos pais, o KidGuard, divulgou seus anúncios ao lado de resultados no Google para buscas como "descubra se sua cara-metade o está traindo". Um porta-voz da empresa, com sede em Los Angeles, disse por e-mail que o trabalho de marketing e de atendimento ao cliente era terceirizado, e que estes estavam "testando novas estratégias". Posts no blog sobre espionagem de parceiros foram excluídos e ele garantiu que essa atividade não era realizada. O Spyzie, outro aplicativo que utiliza o mesmo tipo de anúncios, não respondeu aos pedidos de comentários.
Opiniões e discussões online sobre esses programas sugerem que o mercado de espionagem de cônjuges é importante para os negócios. A FlexiSPY, uma empresa de aplicativos, publicou resultados de pesquisa em seu site mostrando que 52% dos clientes em potencial estavam interessados porque achavam que seus parceiros poderiam estar enganando-os. Em resposta à pergunta sobre os resultados, a empresa disse que os dados eram de cinco anos atrás e "não mais relevantes".
Aplicando a lei
Muitas agências de manutenção da lei não têm habilidades informáticas para ajudar rapidamente os sobreviventes, ou não dedicam recursos forenses ao abuso doméstico e casos de perseguição, que são delitos em muitos Estados dos EUA.
O departamento do xerife no Condado de Dakota, em Minnesota, está tentando resolver o problema da vigilância digital abusiva e usou subsídios do Departamento de Justiça para contratar um especialista forense para a tarefa. O xerife Tim Leslie disse que, de 2015 a 2017, o departamento foi ao tribunal em 198 casos envolvendo tecnologia e vigilância ou abuso doméstico, o que corresponde aos números de anos anteriores. Sua taxa de condenação aumentou de 50% para 94%, com mais suspeitos assumindo a culpa em vez de contestar as acusações, disse ele.
Em um dos casos, o especialista analisou o telefone de uma mulher e descobriu que havia um programa chamado Mobile Spy, comprado por meio do endereço de e-mail do seu então marido. O especialista verificou que ele havia sido iniciado 122 vezes. O efeito da perseguição foi "profundo", disse a mulher.
Mesmo que fizesse mais de um ano desde que o aplicativo fora usado pela última vez, o homem foi acusado de perseguição indevida e se declarou culpado em 2015.
— Pegamos pesado com as contravenções, porque, teoricamente, se as evitarmos, elas não vão se intensificar — disse Leslie.
Por Jennifer Valentino Devries