Pense em todos os jogos que, de alguma maneira, envolvem o uso de armas de fogo. Jogos de guerra, jogos de investigação, jogos de super-heróis, sci-fi, fantasias em outras dimensões, enfim. Pense no que era preciso fazer para adquirir essas armas: vasculhar o cenário, comprar, roubar, construir, pegar dos adversários, enfim.
Agora como você consegue suas armas de fogo em Watch Dogs 2?
Você IMPRIME elas em uma impressora 3D.
Esse, meus amigos, é o tom do game da Ubisoft. Pelas artes divulgadas, que mostravam as vestimentas dos personagens, dava para ter uma noção que a coisa seria hipster. Mas imprimir armas me derrubou sobremaneira. Sério.
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Não que esse seja um problema, longe disso. Achei, inclusive, inventivo. No geral, é só mais um indicador da São Francisco descoladíssima que a desenvolvedora construiu para seu jogo. A cidade é coberta por street art e quase ninguém parece vestir uma única peça de roupa, digamos, normal. Estilo, muito estilo. Todo mundo é estiloso pacas em Watch Dogs 2.
Daí que, às vezes, satura um pouco. Talvez porque quisessem um clima menos sombrio que o primeiro Watch Dogs, pesaram a mão na paleta de cores na sequência. Dá para entender e acho que eles acertaram na maior parte do tempo. Os personagens são muito, mas muito melhores do que Aiden Pearce. Não apenas o protagonista, Marcus, mas todos os que o cercam.
Pearce era impossível de amar. O estereótipo do herói caído, taciturno e sem brilho, lutando por vingança motivado por um trope batido. Logo no início de Watch Dogs 2, Marcus está caindo na farra na praia com os amigos e acordando de cuecas na casa de desconhecidos. É disso que a gente está falando, ora essa. É com esse tipo de gente que eu quero seguir em frente.
Marcus é um hacker que se alia a um grupo de meliantes virtuais, o DeadSec. O nome é para assustar, mas eles são só guris habilidosos tentando derrubar uma poderosíssima corporação, a Blume – uma mistura de IBM com Microsoft e Apple. Só que o que o DeadSec tem de estilo, falta em maturidade – o que torna sua causa romântica e, portanto, simpática. São moleques tretando contra o sistema, algo que todos nós (ou boa parte de nós) já experimentou de alguma maneira alguma vez na vida.
Seguindo pela história principal, você vai descobrindo os podres da empresa e seus planos de, hã, dominação mundial. E aí Watch Dogs 2 vira muito Black Mirror, porque o que a Blume quer no mundo do game é o que todas as empresas do tipo querem no mundo real: informação. E ela está colhendo essas informações de maneira pouco ou nada ética, usando da falta de conhecimento das pessoas.
A ideia, portanto, é expor a empresa. Como? Uma das formas é fazendo exatamente o que ela faz: convencendo as pessoas a baixarem o aplicativo do DeadSec e, desta forma, cederem seus dados e dispositivos para que o grupo hacker amplie sua capacidade de processamento. A lógico faz sentido: quando mais seguidores, mais alcance. Quando mais alcance, mais poder. É um anti-heroismo que me agrada, porque torna os mocinhos dão dúbios quanto os vilões.
Agora, entenda: são duas potências medindo força no ambiente virtual. A guerra é de neurônios. Vai vencer quem melhor conseguir ludibriar o adversário. Então qual a razão, Ubisoft, qual a razão dos personagens usarem armas de fogo? Nada, absolutamente nada, combina menos com Marcus do que um fuzil.
Pela simples razão de ele ser um soldado digital. Seu campo de batalha é o ciberespaço. Por que diabos ele teria (ou sequer saberia como) atirar nas pessoas? Matar, tirar uma vida, mesmo em uma situação de risco, não é o que se espera dele. Nem dos seus companheiros. Me sinto confortável hackeando unidades móveis de desconhecidos ou da Blume, acho incrível usar meus drones para roubar dados de criminosos ou confundir equipamentos de segurança, é uma boa sacada poder usar dispositivos móveis contra seus próprios donos, mas puxar uma pistola e furar alguém de bala? Qual o sentido disso?
É evidente que, em algum momento, o adversário botará forças de segurança atrás de mim. Ele representa o sistema e é assim que o sistema age quando confrontado: ele parte para a agressão. Mas, se eu revido na mesma moeda, isso me faz tão parte do problema quanto ele. Quero que Marcus seja capaz de empreender fugas extraordinárias ou passar despercebido, não que ele estoure a cabeça de policiais com uma escopeta.
Confesso que essa violência, desnecessária e gratuita no meu entender, tirou um pouco do bonito brilho psicodélico que envolve Watch Dogs 2. Mas tento enxergar o copo meio cheio, porque o texto do jogo é muito bom. Trata de questões cruciais para o nosso tempo para além do big data – que já é, por si só, assunto para uma vida toda.
Há boas e certeiras discussões sobre racismo, misoginia e homofobia, por exemplo. Se em uma das missões você precisa apenas sacanear um blockbuster ou roubar o trailer de um novo jogo da Ubisoft, em outras a ideia é expor uma rede de pedofilia ou desmascarar uma igreja que pratica lavagem cerebral nos seus membros. Os diálogos são bem escritos, têm humor e personalidade e sobram críticas para a indústria do entretenimento, para o monopólio das empresas de informação e para as redes sociais.
Nem os protagonistas estão a salvo do olhar ferino dos roteiristas, não raro caindo em situações ridículas pelas próprias necessidades de satisfazer seus egos – sejam tirando selfies para conquistar mais seguidores, seja lambuzando a cidade com o nome do DeadSec.
Resumindo, Watch Dogs 2 é um bom conto sobre os nossos tempos.