
A investigação que resultou na Operação Porta Fechada, desencadeada pela Polícia Civil na manhã desta terça-feira (18), em quatro Estados, tem, entre os alvos, um possível esquema envolvendo uma facção criminosa do Vale do Sinos e uma empresa que abastece cantinas em prisões gaúchas.
— Foi descoberto um esquema que se valia das cantinas de presídios para lavagem de dinheiro. Essa empresa está envolvida na maior parte das cantinas do Estado. É um esquema bem complexo e já perdura há bastante tempo. Eles utilizam as contas para esquentar o dinheiro do tráfico — detalha a delegada Ana Flávia Leite, do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc).
Durante o cumprimento de mandados, em uma das sedes da empresa, em Novo Hamburgo, a polícia apreendeu R$ 100 mil em espécie e uma pistola 9mm. Dois sócios da empresa foram presos. Entre eles, está uma advogada, de Charqueadas, que foi solta nesta tarde após pagamento de R$ 208 mil em espécie, como fiança. Os nomes dos presos não foram divulgados.

O esquema investigado, segundo a polícia, envolveria o que se chama de “mescla”. A Polícia Civil não divulgou o nome da empresa investigada, mas Zero Hora apurou que se trata da Mais Sabor Alimentos Ltda, com sede no município de Charqueadas, na Região Carbonífera. A reportagem busca contato com a defesa dos investigados.
— São várias casas prisionais onde as cantinas são gerenciadas por essa empresa, que detém o direito de explorar essa atividade lícita dentro das penitenciárias, que são espalhadas por todo o Estado do RS. Além do dinheiro lícito, que corre dentro dessa empresa, com a venda de mantimentos e alimentação para os encarcerados, também foi identificado dinheiro ilícito circulando dentro dessa empresa — diz a delegada.
Na conta da empresa investigada circularia tanto o dinheiro obtido de forma lícita com a venda de produtos nas cantinas das prisões, como o dinheiro ilícito, fruto do tráfico ou de outros crimes, como extorsões. Integrantes dessa empresa, que não teve o nome divulgado pela polícia, estão entre os alvos da operação.
Ainda que nas cadeias estejam presentes diferentes grupos criminosos, o esquema envolveria, segundo a investigação, somente uma facção, com berço no Vale do Sinos, mas que hoje possui atuação em praticamente todo o Estado. A polícia identificou depósitos, que fariam parte do esquema de lavagem de dinheiro.
Conforme a polícia, integrantes da facção realizavam diversos tipos de golpes e extorsões, com intuito de retirar dinheiro das vítimas. Os valores obtidos eram, então, transferidos para "laranjas" — pessoas que agiam como intermediárias — para mascarar a origem do dinheiro e dificultar o rastreamento dos recursos ilícitos. Uma parte do valor arrecadado era destinado aos pagamentos via Pix para a empresa investigada.
Os valores obtidos com esses golpes eram, muitas vezes, segundo a investigação, direcionados para contas bancárias associadas à empresa, disfarçadamente, com o objetivo de pagar por itens adquiridos para as cantinas das unidades prisionais. A investigação aponta ainda movimentações financeiras consideradas atípicas e suspeitas nas contas bancárias da empresa. Em menos de 10 meses, foram realizadas transações de cerca de R$ 32 milhões.
— A gente vai dar continuidade a esse trabalho e apurar como se dava essa situação. Por qual motivo essa empresa fornecia as contas. Vai ser um trabalho mais aprofundado, relacionado à lavagem de dinheiro — diz o delegado Alencar Carraro.
A empresa vem firmando contratos, de forma individual, com o Estado, para a concessão de espaço para a comercialização de produtos alimentícios dentro das prisões. A maior parte dos contratos analisados pela polícia teve início no ano de 2019 e, desde então, têm sido realizadas renovações e inclusão de aditivos.
A polícia identificou ainda que funcionários da mesma empresa estiveram envolvidos em ocorrências nas quais aparecem como suspeitos de facilitar a entrada de armas de fogo e entorpecentes dentro dos estabelecimentos prisionais, utilizando as cargas de alimentos como fachada. Num dos casos registrados, no ano de 2021, cocaína e maconha foram encontradas dentro de potes de achocolatado que estavam sendo transportados para dentro de unidades prisionais.
Essa apreensão, segundo a polícia, levantou suspeitas sobre o uso de mercadorias comuns, como alimentos, para ocultar e transportar substâncias ilícitas dentro dos estabelecimentos prisionais. Também no ano de 2021, foi encontrado um revólver e entorpecentes em um dos caminhões, que transportava mercadorias para abastecer as cantinas das penitenciárias.
Decisão judicial na Serra
Em novembro de 2024, a Justiça determinou a suspensão do serviço e a abertura de investigação na cantina da Penitenciária Estadual de Caxias do Sul. A suspeita era de lavagem de dinheiro, além de práticas que possam favorecer a presença de organizações criminosas dentro do presídio. A empresa Mais Sabor Alimentos Ltda era até então a responsável por atender a prisão.
A magistrada juíza Paula Moschen Brustolin Fagundes apontou na decisão que não há controle estatal sobre os produtos e quantidades que ingressam na penitenciária por meio da cantina sobre a circulação de dinheiro no interior da casa prisional, já que o dinheiro que ingressa por meio das visitas não estaria sendo utilizado para o pagamento dos produtos.
A decisão foi baseada em uma inspeção realizada pela juíza na casa prisional no dia 8 de novembro. Ela argumenta que itens teriam entrado na cantina do presídio sem registro fiscal e tais materiais e alimentos observados por pela magistrada também não constariam na lista de permitidos pela Superintendência de Serviços Penitenciários do Estado (Susepe).
Segundo a juíza, a "conta não fecha", porque, conforme informações prestadas pela Pecs no momento da inspeção, os valores que entram nos presídios, semanalmente, por meio das visitas giram em torno de R$ 4 mil por galeria. Por outro lado, a Galeria B, por exemplo, chega a adquirir mais de R$ 40 mil por semana.
Além disso, segundo a decisão, os pagamentos dessas mercadorias seriam feitos por meio de movimentações bancárias de R$ 5 mil a R$ 9 mil, sem transparência sobre quem está pagando o montante.
Contraponto
Empresa
Pablo Laurindo Garcia Simas, advogado responsável por representar a Mais Sabor Alimentos Ltda, disse que não teve acesso ainda ao teor da acusação (leia abaixo a nota na íntegra), assim como os colegas de escritório que estão trabalhando no caso, mas afirma que a empresa não tem relação com a facção investigada.
"Ainda sem o teor da acusação, a Mais Sabor Alimentos LTDA jamais se coligou com qualquer apenado, a empresa, por contratos prévios em licitações, vende mercadorias nas penitenciárias há quase 06 anos ( mercadorias aprovadas e repassadas antes com scanner na entrada pela polícia penal), existem provas de compra e venda bem como que todo faturamento da empresa são destas vendas, tudo adequado, basta solicitarem as provas que serão apresentadas (balanços e outros documentos).
Se existem ilegalidades ou qualquer ilícito não é de concorrência da empresa, que está há 06 anos comprovando seguidamente ( sempre que surgem especulações semelhantes em razão do objeto de trabalho ser um local como as penitenciárias ) que atua na legalidade, com ética e transparência e vende só o permitido. É lamentável a postura da investigação, gerando ao senso popular uma situação de responsabilidade indevida a quem não praticou nenhum ilícito, com danos irreparáveis no campo social".
Em novembro do ano passado, Pablo afirmou, em relação à decisão judicial em Caxias do Sul, que a empresa segue o contrato proposto pela Susepe para operar o serviço.
— Nada é vendido sem autorização da casa, até porque não entraria [na penitenciária]. Os agentes penitenciários têm um sistema de filtro que passam todas as mercadorias para ver se há alguma irregularidade — declarou na época.
Polícia Penal
Em nota, a Polícia Penal informou que a empresa está presente em 10 unidades prisionais e sua contratação foi oriunda de procedimentos de licitação públicos realizados entre 2018 e 2022 nos termos da Lei Federal nº 8.666/1993 e da Lei 7.810/1984.
Segundo a manifestação, à época, a empresa apresentou todas as comprovações e cumpriu todas as exigências contidas nos editais. “No contrato estabelecido com a empresa vencedora há um Termo de Referência, documento que regula o funcionamento e autoriza uma lista de produtos supérfluos que o Estado não fornece, permitindo a sua comercialização com base estrita no edital.”
A nota informa ainda que a “administração, tanto da Polícia Penal quanto da Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo, tomando conhecimento de qualquer fato que caracterize descumprimento ou irregularidade contratual, utiliza do poder-dever de agir e, consequentemente, instaura procedimentos para apuração, observando o devido processo legal”.
A manifestação informa ainda que “todas as denúncias e apurações são conduzidas pela Corregedoria-Geral do Serviço Penitenciário e as suas informações não são publicizadas durante o processo investigatório, preservando o devido processo legal”.