Na contramão do saldo do ano passado, o Rio Grande do Sul iniciou 2024 com aumento dos homicídios, puxado principalmente pelos números do interior do Estado. As disputas do crime organizado estão por trás do acréscimo nas execuções. Os maiores alertas se dão em Caxias do Sul, na Serra, e Santa Maria, na Região Central, onde são concentrados esforços na tentativa de reverter esse cenário. Passo Fundo, no Norte, e Pelotas, no sul, também apresentaram elevação nos casos de homicídios no primeiro mês do ano.
Esse contexto levou as forças de segurança a traçar estratégias para tentar conter a onda de violência. A aposta é repetir a fórmula usada nos últimos anos na Grande Porto Alegre: aumentar as apreensões de armas e drogas, capturar foragidos, responsabilizar executores e lideranças, saturar as áreas em conflito, reduzir a comunicação dos chefes dentro das cadeias, e atacar as finanças das facções, por meio do combate à lavagem de dinheiro, entre outras ações.
— Em Caxias do Sul, mandamos para lá uma delegacia do Departamento de Homicídios de Porto Alegre para reforçar as investigações e da Delegacia de Capturas do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais) para buscar foragidos. No caso de Santa Maria, fizemos reforço com pessoal da região, deslocamos funcionários de outras delegacias para a de homicídios — explica o chefe da Polícia Civil no RS, delegado Fernando Sodré.
As duas cidades estão entre as mais populosas do Estado — Caxias do Sul ocupa a segunda posição, com 463 mil habitantes e Santa Maria está na quinta, com 271 mil. Em comum, também possuem o fato de terem bom poder aquisitivo, o que acaba também sendo atrativo para o crime. A presença das facções não é novidade nestes municípios, que já possuem grupos instalados. A intenção com o reforço nas investigações é mapear quem são os responsáveis pelas execuções e os mandantes dos crimes, muitos deles já atrás das grades.
— São os próprios grupos das cidades que entram em conflito por busca de espaço e território. E também para assumir posições dentro dos grupos criminosos. Não tem um movimento de o pessoal de Porto Alegre estar subindo a Serra para assumir lá. Isso não está detectado. Mas existem conflitos desses grupos nas regiões — avalia Sodré.
Prisões
De parte da Brigada Militar, foram enviados reforços do Batalhão de Operações Especiais e do 1º Batalhão de Choque de Porto Alegre. Em Caxias do Sul, há uma força-tarefa envolvendo o Comando Ambiental, o Comando Rodoviário, o Batalhão de Aviação e a Polícia Civil para fazer com que as áreas conflagradas passem a ser ocupadas também pelas polícias. A intenção é evitar os confrontos e também os revides.
— A BM, desde que vislumbrou esse início de anomalia, já no final de 2023, começou a tomar medidas de inteligência, de levantamentos realizados junto com a Polícia Civil para que pudéssemos detectar o que estava acontecendo. É uma disputa entre grupos rivais. Isso recrudesceu no início ano, em janeiro. Tudo gira em torno do tráfico de drogas. É necessária essa ação de Estado. Enviamos alguns reforços necessários que se mostraram eficazes pela quantidade de apreensões e prisões realizadas. É uma fórmula que na área mais conflagrada no Estado, num passado não tão distante, deu certo. O mesmo está sendo feito em Santa Maria — avalia o comandante-geral da BM, coronel Cláudio dos Santos Feoli.
Em fevereiro, em Caxias do Sul, 139 pessoas foram presas em flagrante, 29 foragidos foram recapturados e 34 armas foram apreendidas pela BM. Em 40 dias — desde 15 de janeiro —, 55 pessoas foram presas por policiais da delegacia regional. Outros seis investigados foram detidos pelo Deic nos últimos três dias.
Em Santa Maria, na semana passada, um grupo que estaria envolvido nos casos recentes de homicídios foi preso após confronto com a Brigada Militar, no bairro Bom Fim. Três foram detidos e um acabou morto na troca de tiros. Com o grupo foram apreendidas seis armas, três coletes balísticos, munições, uma câmera de monitoramento e drogas.
Disputa entre dois grupos na Serra
Caxias do Sul está no topo das preocupações, isso porque apresentou o maior aumento em janeiro no RS, num salto de 66% nos assassinatos — de nove para 15. Na Serra, a disputa é patrocinada por facções da Região Metropolitana, que dizimaram os rivais locais e agora disputam o controle do tráfico.
As mortes recentes são atribuídas especialmente à rivalidade pelo poder entre duas organizações criminosas. Uma delas tem berço no bairro Bom Jesus, em Porto Alegre, e outra nasceu no Vale do Sinos. As duas atuam em todo o Estado e até fora dele, e disputam território em Caxias há anos. No ano passado, foram registrados conflitos entre as duas, que escalaram e resultaram no aumento de mortes em janeiro, de acordo com a polícia.
Um dos últimos episódios foi o assassinato de uma liderança do grupo da Bom Jesus, Jeferson Neves Montanari, conhecido como Fera. Conforme a polícia, o homem atuava na região de Caxias, como líder, e se refugiou no município de Vacaria porque se sentia ameaçado pelo grupo rival. No entanto, foi localizado e baleado com ao menos 10 disparos dentro de sua empresa de guinchos, em Vacaria, em junho de 2023. Era apontado pela polícia como importante distribuidor de crack na Serra.
— Foi o último grande atentado contra uma liderança, e o estopim para o início desses conflitos de forma mais letal. Já tínhamos registro de um revanchismo entre os dois grupos ao longo de 2023, ora são autores de homicídios, ora são vítimas. Mas a partir desta morte, notamos aumento nos casos de homicídios no município, que se intensificou em janeiro — explica o delegado regional de Caxias do Sul, Augusto Cavalheiro Neto.
Segundo o policial, ao longo do conflito, outros indivíduos que integravam as facções, mas tinham posições mais baixas de hierarquia, também foram mortos. Do trabalho da polícia para tentar conter o avanço de assassinatos, o delegado destaca duas “prisões importantes” feitas recentemente. Uma delas em Itapema, Santa Catarina e outra num apartamento em Copacabana, na capital carioca, no Rio de Janeiro. Os dois presos são apontados como lideranças de primeiro escalão na Serra, do grupo da Bom Jesus. São também investigados por ataques e homicídios.
Na Região Central, maior número de facções
Em Santa Maria, foram sete homicídios em janeiro, e fevereiro já registra pelo menos nove crimes desse tipo. A situação segue preocupando as forças de segurança. Os dois casos mais recentes ocorreram nesta quinta-feira (22), quando um idoso foi morto a facadas, na área central, e um homem de 45 anos foi executado a tiros, no bairro Nova Santa Marta.
Na cidade estende-se uma espécie de colcha de retalhos das facções criminosas, algumas com maior atuação do que outras. Há pelo menos sete grupos locais disputando o tráfico de drogas no município da Região Central. No topo dessa briga, estão duas gangues: uma delas possui maior domínio dos pontos e está presente em praticamente todo o município. Outra quadrilha mantém a hegemonia do tráfico na região da Vila KM2, no bairro Divina Providência.
Além da disputa entre esses dois grupos, estão presentes em Santa Maria pelo menos três grupos criminosos da Região Metropolitana. As duas quadrilhas locais em disputa, embora briguem entre si, são aliadas da mesma facção que nasceu no Vale do Sinos. Presente em todo o Estado, das organizações criminosas da Grande Porto Alegre, é a que está há mais tempo instalada em Santa Maria. É apontada como a responsável pelo abastecimento de armas e drogas para esses grupos locais. A facção com berço no bairro Bom Jesus, na zona leste de Porto Alegre, também está instalada no município há anos.
Em paralelo, há outro conflito por trás dos assassinatos em Santa Maria. No fim do ano passado, outra facção, que se uniu para fazer frente à organização criminosa do Vale do Sinos e aos traficantes da Bom Jesus, começou a tomar poder na Região Central. A disputa que leva sangue às ruas também se dá dentro do sistema penitenciário, onde os criminosos buscam tomar galerias. Nesta semana, uma operação integrada foi desencadeada na Penitenciária Estadual de Santa Maria (PESM). Durante a ação, foram revistados 247 apenados e 28 celas, que resultaram na apreensão de celulares e facas artesanais.
Passo Fundo e Pelotas
Desde 2012, Passo Fundo não registrava o número de mortes que alcançou em janeiro deste ano. Foram sete homicídios, segundo dados divulgados pela SSP – naquele ano, foram oito assassinatos no município do norte do Estado. No mesmo período do ano passado, tinham sido três homicídios, ou seja, houve aumento de 133%. No caso do município, no entanto, ainda que a motivação esteja ligada ao tráfico, a análise da polícia é de que não há uma disputa entre facções, mas sim de lideranças criminosas locais que querem demonstrar poder.
Dos municípios que apresentaram alta nos crimes, Pelotas, no sul do Estado, apresenta o cenário menos alarmante no momento. Dos sete homicídios registrados em janeiro, três deles estão relacionados ao contexto do tráfico, mas teriam sido cometidos pelo mesmo autor, um apenado, que acabou morto em janeiro na Capital. Outros três teriam sido motivados por outros contextos, como vingança e desavenças pessoais. Há um caso investigado como possível bala perdida.
— Pelotas já vinha de um número de homicídios muito baixo. Houve aumento, mas com um número de incidência bem mais baixo. Estamos monitorando, mas entendemos que a situação ali está bem controlada — diz o delegado Sodré.
Prisão de foragido é aposta para reduzir homicídios na Capital
Preso nesta semana numa farmácia em Garopaba, no sul de Santa Catarina, Maicon Donizete Pires dos Santos, o Red Nose, 32 anos, vinha sendo caçado nos últimos meses. Ele é apontado como o pivô de parte dos homicídios ocorridos nos últimos seis meses em Porto Alegre e Região Metropolitana. Segundo a polícia, o criminoso tentou dar uma espécie de “golpe de Estado” na facção da Bom Jesus da qual fazia parte. O criminoso foi capturado pela equipe do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).
— Ele conseguiu dar um golpe, furtando dinheiro e material bélico da facção, e começou a cooptar parceiros. A ideia dele era criar um novo grupo — explica o delegado Rafael Pereira, do DHPP.
Para criar a nova quadrilha, o criminoso teria buscado apoio de outros traficantes do Paraná e Santa Catarina, segundo a polícia. A estimativa é de que essa desorganização tenha tido influência em pelo menos 30 homicídios. As mortes ocorreram na Capital, especialmente no bairro Mario Quintana, em Viamão, Canoas e Alvorada. Entre os crimes nos quais o preso estaria envolvido, estão os da estudante Sarah Silva Domingues e do comerciante Valdir dos Santos Pereira, na Ilha das Flores, no fim de janeiro.
— Era a prisão mais importante que tínhamos que fazer para reduzir homicídios no RS — avalia o secretário de segurança, Sandro Caron.
Em Porto Alegre, no mês de janeiro houve aumento dos homicídios – foram 29 assassinatos enquanto no mesmo período do ano passado tinham sido 22. O número é o maior desde 2020, mas, por outro lado, é bem menor do que o registrado em anos anteriores. Em 2017, por exemplo, a Capital chegou a ter 105 assassinatos em janeiro.
Além desse conflito envolvendo Red Nose, em Porto Alegre a disputa entre duas facções na região do bairro Santa Rosa de Lima, na Zona Norte, também impactou nos números. Há ainda mais um fator, que é o percentual de mortes não relacionadas ao crime organizado. Segundo a Polícia Civil, a média costuma ser de 80% de mortes geradas pelo tráfico, no entanto, em janeiro esse índice ficou em 68%. Ou seja, houve aumento de mortes com outras motivações, como desavenças pessoais. No mês de fevereiro, até o momento, há queda na comparação com o mesmo período do ano passado. Em 2023, foram 24 homicídios na Capital em fevereiro – até esta sexta-feira (23), tinham sido nove assassinatos.
Em Canoas, na Região Metropolitana, também houve ligeiro aumento dos assassinatos, de 11 para 12. Neste caso, a retomada do comando de parte do tráfico de drogas por uma liderança de perfil mais agressivo foi o gatilho para uma série de conflitos com outras facções, segundo a polícia. Esse preso, que já esteve em penitenciária federal, foi transferido nesta semana para outra prisão dentro do sistema do RS.
Raio-x dos homicídios no Estado
Em janeiro deste ano, o Rio Grande do Sul teve aumento de 15% nos homicídios — de 163 para 187. Os assassinatos no primeiro mês deste ano ocorreram em 77 municípios gaúchos, sendo a Capital a que teve o maior número, com 29 assassinatos. As 11 cidades no topo da lista concentram pouco mais da metade das mortes (52%).
Além de Porto Alegre, estão nessa ordem no ranking Caxias do Sul, na Serra, Canoas, na Região Metropolitana, Passo Fundo, no Norte, Pelotas, no Sul, Santa Maria, na Região Central, Rio Grande, no Sul, Alvorada, na Grande Porto Alegre, Lajeado, no Vale do Rio Pardo, São Leopoldo, na Região Metropolitana, e Vacaria, na Fronteira Oeste. Dessa lista, somente Alvorada e São Leopoldo tiveram queda no comparativo com janeiro de 2023.
Logo depois, há quatro municípios nos quais foram registrados três assassinatos em cada. Desses, Alegrete e Guaíba tiveram aumento, e Bento Gonçalves e Viamão apresentaram queda. Em 15 municípios, foram registrados dois homicídios em cada, sendo que desses somente em Gravataí houve queda no número — em 12 houve aumento e em dois estabilidade. Há ainda 47 municípios nos quais foi registrado um homicídio em cada.