Aos seis anos, Maria* teve a infância roubada. As noites de diversão na casa de uma das melhores amigas se tornavam momentos de terror quando as luzes se apagavam. Enquanto todos dormiam, o pai da amiga abusava sexualmente da menina, no mesmo quarto em que estava a filha. O medo e a vergonha silenciaram Maria durante 30 anos.
Em fevereiro de 2023, ela recebeu uma ligação com uma notícia há muito esperada: o homem que a violentou havia sido preso. Hoje com 66 anos, ele foi acusado de abusar sexualmente de duas crianças, de 7 e 10 anos, entre janeiro de 2022 e janeiro de 2023.
Os estupros aconteceram em um município do sul do RS. Assim como no caso de Maria, as famílias das vítimas eram próximas do abusador. Essa proximidade foi determinante para que o caso dela não fosse denunciado às autoridades quando ocorreu.
— Quando eu me tornei adolescente, resolvi contar para a minha melhor amiga da época. Decidi contar porque eu estava sentindo como se eu estivesse ficando louca. Como se fosse uma loucura aqueles abusos que eu sofria. Contei a ela e pedi para que ela nunca contasse a ninguém, e foi o que ela fez. Eu tinha vergonha, achava que a minha família não merecia. Criei um misto de sentimentos. Quando fiquei mais velha, contei para os meus pais, mas pedi que não fizessem nada, porque já não adiantava, já tinham passado muitos anos — lembra.
Aos 36 anos, as marcas da violência sofrida se tornaram potência para lutar contra a dor e apoiar as famílias de outras vítimas. Quando soube dos casos recentes, Maria decidiu prestar depoimento à polícia e fez contato com as mães das crianças.
Em um dos casos, o abuso ocorreu durante uma pescaria, dentro de um açude. Outro crime denunciado ocorreu durante a festa de Ano-Novo de 2022, quando o homem teria pedido para tocar a vítima em um banheiro.
Em 16 de agosto, ele foi julgado e condenado a 44 anos de prisão pelo crime de estupro de vulnerável. A defesa pediu a absolvição do réu alegando "inépcia da denúncia" e falta de provas, mas o recurso foi negado.
Não envolve só a minha dor, mas a dor que ele causou a todos nós. É um crime que jamais vai ser esquecido
MARIA*
Vítima de abuso sexual
Em sua decisão, o juiz Daniel de Souza Fleury escreveu que as vítimas “apresentaram relato uniforme e coerente, contando os abusos sexuais sofridos por parte do acusado, sem sinal de qualquer fraude ou distorção, além de ser corroborada pelas demais provas dos autos”.
Maria acompanhou o julgamento. Segundo ela, foi um momento de “alívio” por saber que o sofrimento que amargou por décadas não seria causado a mais ninguém por aquele homem. No entanto, relata que as cicatrizes deixadas pelo abuso são profundas.
— Desde nova, sempre fui para psicólogo, sofro de ansiedade, tomo medicação para controlar. É um sentimento de muita tristeza, de culpa, a gente passa a não confiar mais nas pessoas. Não envolve só a minha dor, mas a dor que ele causou a todos nós. É um crime que jamais vai ser esquecido.
*O nome da vítima foi alterado para preservar a identidade dela.
Prevenção nas escolas
Desde abril, o delegado Vladimir Peukert Urach, responsável pela 29ª Delegacia de Polícia Regional do Interior, conduz o projeto Libertar, nas escolas do sul do RS. Os agentes da Polícia Civil percorrem as instituições de ensino da região ministrando palestras em que dialogam sobre o abuso sexual com alunos e professores, com foco na conscientização.
Segundo o delegado, em cinco meses de projeto, já foram recebidas pelo menos 35 denúncias. Ele pontua que após as palestras os alunos se sentem estimulados e encorajados a denunciar casos de abuso.
— As pessoas sentem medo, não querem se expor, mas não podemos deixar isso se perpetuar — sublinha o delegado.
Após uma palestra do projeto Libertar realizada no dia 4 de setembro, um grupo de cinco alunas procurou a polícia denunciando uma série de abusos e ameaças que teriam sido cometidos por uma professora. A mulher, de 29 anos, foi presa no mesmo dia.
O delegado Vladimir Peukert Urach afirma que vem buscando apoio para a instalação de unidades do Departamento de Proteção a Grupos Vulneráveis (DPGV) nas localidades em que elas ainda não existem.
Como denunciar
- Disque 100: recebe denúncias sobre violência contra criança e adolescente em todo o país
- Brigada Militar: pode ser acionada pelo 190 em qualquer cidade do RS
- Polícia Civil: basta ir à delegacia mais próxima ou repassar a informação pelo telefone de forma anônima. É possível utilizar o Disque Denúncia pelo 181. A Divisão Especial da Criança e do Adolescente (Deca) em Porto Alegre atende pelo telefone 0800-642-6400
- Conselho Tutelar: denúncias são verificadas. Em Porto Alegre, há plantão na Rua Fernando Machado, 657, Centro Histórico, inclusive durante a noite e aos fins de semana. Em casos de emergência é possível ligar para os telefones (51) 3289-8485 ou 3289-2020. O endereço e telefone de cada uma das unidades podem ser conferidos neste link.