Os relatos de adolescentes internados na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do RS (FASE/RS), em Porto Alegre, indicam que servidores do local teriam cometido violência físicas e psicológica, e proferido ameaças para que os ataques não fossem denunciados. Os episódios teriam ocorrido no setor de atendimento especial da Comunidade Sócioeducativa (CSE), no complexo da Vila Cruzeiro. Nesse local, os internos dizem que eram "tratados igual bicho" e só podiam solicitar aos agentes "papel higiênico, água e descarga". Os relatos foram encaminhados pela Defensoria Pública ao Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS), que determinou afastamento imediato de quatro servidores públicos. A Fase afirma que eles foram alocados para outro setor da instituição e respondem a um processo interno que apura as denúncias — confira a nota completa abaixo.
Três homens, que teriam cometido as agressões, e uma mulher, que teria presenciado atos sem reagir ou denunciá-los, foram afastados no dia 16. Os nomes deles não foram divulgados.
O primeiro relato chegou à Defensoria Pública por um dos internos, no dia 5. Segundo ele, as agressões eram frequentes e ocorriam em uma sala usada pelos servidores, que não tem câmeras de monitoramento. No entanto, o adolescente afirmou que uma agressão sofrida por ele, dois dias antes, teria ocorrido fora dali e sido flagrada por câmeras.
As imagens, solicitadas à Fase pela defensoria, mostram o adolescente algemado caminhando ao lado de um dos servidores. Ele é agredido com cabeçadas, xingado e recebe dois socos na altura da cabeça. Em outra cena, o interno aparece subindo uma escada quando é empurrado por um servidor. Ele bate com as mãos e braços no piso, sem conseguir se proteger da queda, em razão das algemas. O vídeo mostra ainda uma servidora que observa a ação, sem interrompê-la.
A partir disso, mais internos foram ouvidos por defensores públicos. Dos 24 jovens do local, 21 afirmaram terem sido agredidos pelos agentes na "salinha", onde não há câmeras. Os relatos indicam, além de agressões físicas, violência psicológica e ameaças para que os ataques não fossem denunciados.
— Aqui não existe socioeducação, aqui é cadeia — teria dito um dos servidores, segundo relato de um interno.
Para evitar denúncias, o servidor também teria afirmado que o defensor público e a juíza que o atendem sabiam das agressões e não tomariam providência. O interno diz que os servidores garantiam que a agressão "não vai dar nada, que o que vale é unicamente a palavra dos agentes".
A maioria dos jovens diz ter recebido diversos tapas na cara e muitos gritos com ameaças. Ofensas como "verme" e "arrombado" também eram comuns, segundo internos. Caso não seguissem as regras, seriam "jogados da escada", "enfaixado e amarrado no dormitório clínico" e "atropelado" (agredido por vários agentes).
— Homem que é homem não reclama, mata na caixa — teria dito um agente, afirmando que o interno não deveria fazer denúncias.
— Pode até chorar ao defensor, mas aqui é lugar de homem — gritou outro servidor, segundo um interno, indicando também violência psicológica.
Um dos adolescentes diz que foi ameaçado de ser "amarrado de porquinho", ou seja, deitado no chão com mãos e pés presas para trás. Outro afirmou que agentes afirmaram que iriam agredí-lo em grupo e arrastar sua cara no chão.
Outro contou que foi agarrado pelo pescoço enquanto estava sentado e algemado. Na sequência, agentes teriam dito que, se fizesse qualquer pedido, seria "arrebentado". Se reclamasse, os servidores injetariam remédios em seu corpo e o amarrariam nu em uma maca, para que ficasse fazendo suas necessidades por dias ali.
Um dos internos relatou ainda que os servidores diziam que, no atendimento especial, só era possível pedir "papel higiênico, água e descarga" e que não era permitido sequer conversar com demais adolescentes.
Segundo a defensoria, mesmo após as denúncias, um dos adolescentes foi levado ao atendimento especial do CSE novamente, onde teria ficado sob custódia dos mesmos servidores. Ao chegar no local, ele teria tentado se suicidar por meio de estrangulamento, e teve que ser atendido pela junta médica da Fase.
As agressões teriam ocorrido todas neste ano, mas a defensoria não descarta que possa haver casos mais antigos.
Após reunir os relatos e imagens de uma das agressões, a Defensoria Pública ajuizou ação na Justiça, pedindo afastamento dos servidores, o que foi concedido em liminar. O documento é assinado pelos defensores públicos Rodolfo Lorea Malhão, Paula Simões Dutra de Oliveira e Fernanda Pretto Fogazzi Sanchotene.
Na ação, os defensores destacam que a função da internação na Fase é recuperar o adolescente para que possa, depois, ser reintegrado a sociedade e tornar-se um adulto saudável. Para eles, a violência física e psicológica não pode ser usada como forma punição junto a condenação que ele já cumpre por ato infracional.
"Para além da prática dos ilícitos, a conduta dos agentes rompe com os princípios da sócioeducação, sepultando o respeito à dignidade inerente do jovem e o objetivo fundamental do tratamento institucional, qual seja, infundir um sentimento de Justiça e de respeito por si mesmo e pelos direitos fundamentais de toda a pessoa. Questiona-se: como infundir tais sentimentos se o jovem privado de liberdade recebe violento tratamento no atendimento especial, justamente no momento em que deveria estar sendo sócioeducado pelo Estado?", pontuam os defensores na ação.
Imagens são "estarrecedoras", diz juíza
Na decisão do TJ-RS, do dia 16, a juíza Karla Aveline de Oliveira afirma que são "estarrecedores" os vídeos mostrados pela defensoria, em que um agente dá cabeçadas em um adolescente. A magistrada diz ainda que os relatos indicam "reiterada prática violenta e desumana", e são suficientes para a concessão do pedido liminar de afastamento imediato dos quatro servidores que atuam na CSE, no objetivo de resguardar os direitos de todos os jovens internos na unidade.
Para a juíza que determinou o afastamento, os episódios representam "evidente constrangimento, humilhação e sofrimento psicológico aos adolescentes que se encontram sob a custódia do Estado".
"A Defensoria Pública, mediante a presente ação, trouxe à apreciação judicial episódios de violências, ocorridos em dias diversos com diferentes jovens, mas que igualmente revelam a reiterada prática abusiva, violenta e desumana na condução do trabalho socioeducativo no interior da unidade CSE", avaliou.
"Registro, ainda, que a prática menorista — com pinceladas da época escravagista — no interior das unidades masculinas da FASE desta Capital, de determinar que os socioeducandos chamem os integrantes do corpo funcional de "seu", "dona" ou em alguns casos pelos apelidos, sem indicação clara do nome completo dos servidores e sem que a FASE exija a utilização de crachá, por parte de servidor público durante o exercício de atividade pública, dificulta a identificação plena dos agressores quando eclodem episódios de violação de direitos, aumenta a sensação de impunidade e acoberta práticas ilegais", complementou a juíza.
A decisão é da 3ª Vara do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, e foi proferida no dia 16. No dia 15, a magistrada realizou oito audiências de reavaliação de medidas socioeducativas dos adolescentes internados na CSE — o que ocorre a cada seis meses —, onde foram confirmados os relatos trazidos pela defensoria.
"Isto é, além dos vídeos e áudios já contidos neste processo, que são suficientes e que ancoram a análise do pedido liminar, ouvi pessoalmente os depoimentos dos internos que possuíam avaliação de medida naquela data e que vivenciaram múltiplas violências neste espaço público que deveria ser destinado à socioeducação".
A juíza ressalta que a CSE possui capacidade para 103 internos e encontra-se com apenas 24 jovens, o que representa ocupação atual inferior a 25%.
"A baixa ocupação populacional corresponde justamente à condição mais favorável para prestação de um atendimento qualificado pela FASE o que, na prática, parece não se concretizar", ponta.
Na ação, os defensores públicos também solicitaram a interdição da unidade, por entender que todos os servidores do local devem passar por capacitação antes de o setor voltar a receber internos. O pedido foi negado. A defensoria ainda pediu indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 500 mil, valor que seria destinado a fundo voltado à qualificação profissional dos adolescentes em cumprimento de medida. Ainda não há decisão sobre o pedido.
Contrapontos
Como o nome dos quatro servidores não foi divulgado, GZH não pode localizar suas defesas.
A Fase se manifestou por meio de nota. Confira:
"A Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE) informa que recebeu da 3ª Vara da Infância e Juventude o despacho da juíza Karla Aveline na sexta-feira (16), e conforme determinação judicial afastou os servidores das atividades na unidade. A FASE reitera que o processo de apuração dos fatos segue em trâmite na corregedoria."