A quantidade de adolescentes que entraram na Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) no Rio Grande do Sul, nos primeiros meses de 2021, é 65% menor do que há 10 anos. São 300 novos ingressos entre janeiro e abril deste ano, frente a 872 em igual período de 2012, quando as casas viviam um cenário de superlotação. Uma década depois, o sistema de ressocialização de adolescentes infratores opera com 55% da capacidade no RS, mas recebe internos que cometem atos infracionais cada vez mais graves.
Quase metade dos adolescentes internados nos primeiros quatro meses de 2021 cumprem medida de restrição de liberdade por roubo, latrocínio (roubo com morte), homicídio e tentativa de homicídio. É o que revelam dados encaminhados pela Fase à pedido de GZH: 45% dos ingressos deste ano — 137 — são adolescentes que cometeram delitos graves e violentos. Há 10 anos, esse percentual não passava de 30%.
Para a diretora socioeducativa da Fase, Claudia Patel, os dados devem ser analisados dentro de um contexto de queda dos principais indicadores criminais, prática de atos infracionais em territórios de vulnerabilidade social e também redução de circulação de pessoas e fechamento de atividades econômicas. E, ainda, pela ótica de outro fator: o ingresso de internos cada vez mais criterioso seguindo recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dentro do cenário de pandemia. Uma delas orienta magistrados a autorizar de forma mais criteriosa o ingresso de adolescentes nesses espaços para que não estejam superlotados, evitando a propagação do coronavírus entre internos e trabalhadores.
Outra resolução, de janeiro deste ano, prevê que todos os Estados tenham centrais de vagas para gerenciar e qualificar o ingresso do adolescente — a medida pretende evitar a sobrecarga das casas, para que não se repitam nelas o cenário das prisões que operam acima da capacidade em todo país.
— Hoje quem ingressa no socioeducativo é o adolescente mais comprometido, que participou de ato infracional com violência e grave ameaça, e o reincidente. Temos 436 vagas só em Porto Alegre e deve-se selecionar muito bem quem vai ocupá-las. Não tem mais possibilidade de ultrapassar esse número — explica Claudia.
Atualmente, o Rio Grande do Sul tem 765 vagas de internação e 182 de semiliberdade, totalizando 947 em oito regionais. Em Porto Alegre, a ocupação de internação é de 39% e no Interior, de 78%. Em todo o Rio Grande do Sul, fica em 55%. Dentro do sistema, o adolescente fica até três anos e no máximo até os 21, quando recebe liberação compulsória.
Ao elevar a régua para o ingresso, a Fase tem recebido adolescentes com trajetória infracional mais graves, afastados da escola, usuário de drogas e com envolvimento com organizações criminosas, um contexto que torna a ressocialização ainda mais desafiadora.
— São perfis complexos, caracterizados na imensa maioria por serem provenientes de território de grande vulnerabilidade, de falta de acesso a direitos sociais e presença do tráfico. E nosso trabalho é romper esse vínculo e resgatá-lo, a partir da educação, profissionalização e atendimentos técnicos de saúde, psiquiátrico, pedagógico, de advogados e profissionais de educação física — explica Claudia.
Na maior parte dos episódios em que adolescentes estão envolvidos em assassinatos é porque estão inseridos dentro de contexto de facção criminosa, explica a diretora do Departamento de Homicídios da Polícia Civil, delegada Vanessa Pitrez.
— Excepcionalmente há casos de um filho que mata o pai, por exemplo. Na maioria das vezes, ele não age sozinho e atua junto a um grupo criminoso e com vinculação com tráfico. São arregimentados muito novos — explica.
Punição mais branda
Durante uma audiência que ocorreu neste mês, a promotora de Justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre, Carla Frós, ouviu de um interno da Fase que ele era gerente do tráfico em uma região da Capital. Segundo ela, possibilidade de ganhar dinheiro, ter lucro fácil e ser reconhecido acaba atraindo adolescentes, especialmente os que vivem em situação de vulnerabilidade. Conforme a promotora, raramente se apreende um menor de 18 anos em flagrante por tráfico sem que ele esteja armado.
Líderes de facções utilizam os adolescentes para praticar crimes mais graves, até mesmo acabar com adversários, porque sabem que eles não ficarão internados mais do que três anos. E, se não conseguem cumprir a determinação, acabam sendo eliminados,
CARLA FRÓS
Promotora
— Muitos assumem posições que até pouco tempo não eram ocupadas por adolescentes. Homicídios e latrocínios em grande parte têm relação com isso. Líderes de facções utilizam os adolescentes para praticar crimes mais graves, até mesmo acabar com adversários, porque sabem que eles não ficarão internados mais do que três anos. E, se não conseguem cumprir a determinação, acabam sendo eliminados — contextualiza a promotora Carla.
Diretora do Departamento de Grupos Vulneráveis da Polícia Civil, a delegada Caroline Bamberg acredita que os grupos criminosos se aproveitam de adolescentes para cooptá-los a cometer delitos, ao mesmo tempo em que garotos e garotas dessa faixa etária estão em fase de buscar autoafirmação e têm a necessidade de pertencer a um grupo.
— Tudo isso, permeado pela dependência química, que também está muito presente nesse meio — analisa.
Essa realidade, segundo autoridades, acabou sendo agravada durante a pandemia, com o fechamento de escolas e a falta de atividades extracurriculares.
A promotora afirma que parte dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas estão, devido à pandemia, em internação estendida domiciliar, que prevê saída de casa apenas para trabalhar e estudar. Em caso de descumprimento da regra, vão para internação sem possibilidade de atividade externa.