Uma pequena cidade no norte do Rio Grande do Sul, Água Santa, tem vivido dias e noites de faroeste. Emboscadas a tiros, brigas com facadas, pedradas e incêndios de casas viraram rotina entre grupos de índios radicados no município de 4 mil habitantes.
As desavenças opõem dois grupos de caingangues da aldeia Carreteiro, uma área de 600 hectares. Um deles é liderado pelo cacique Getúlio Daniel e o outro por ex-aliados dele. O estopim foi ateado quando uma turma de dissidentes se rebelou.
A Polícia Federal (PF) investiga se a discórdia foi motivada por arrendamentos de terras e indicações de cargos nas escolas e postos de saúde próximos – que costumam ser uma prerrogativa do chefe indígena (Daniel).
As hostilidades duram dois meses e se agravaram quando Getúlio Daniel foi ferido com um tiro na perna, durante uma emboscada. Foi uma represália por ele ter mandado embora da aldeia 147 caingangues, dos cerca de 500 que habitam a área.
O grupo expulso acampou na área central de Água Santa, até conseguir abrigo no Clube Brasil de Veteranos, emprestado por agricultores brancos. O cacique diz que seus comandados são hostilizados quando vão fazer compras na cidade (veja entrevista).
Ao todo aconteceram mais de 70 incidentes entre caingangues dentro e fora da aldeia nesses dois meses. Eles incluem três indígenas baleados, alguns outros esfaqueados e apedrejados. Três casas foram incendiadas e não há indicativo de que o conflito esteja por terminar. Há duas semanas, as estradas que levam à área caingangue foram bloqueadas com troncos e pedras por índios mascarados. Ainda continuam as barreiras, apesar dos apelos da prefeitura para que sejam desmanchadas.
— Eles acertam contas na cidade, à noite. Tivemos várias brigas sangrentas, a população está intranquila — descreve o prefeito de Água Santa, Jacir Miorando, que teve audiência por vídeo com a chefia nacional da Fundação Nacional do Índio (Funai).
A audiência teve participação do deputado Alceu Moreira (MDB-RS). Foram prometidas providências para breve.
Miorando relata que as desavenças entre os caingangues são crônicas e que inclusive o último cacique antes de Getúlio Daniel, chamado Valdir Nunes, perdeu o cargo em 2019 em uma manobra de outras lideranças, vivendo hoje na cidade. Mas naquela ocasião não houve conflito. A briga agora é entre Getúlio e os que assumiram o poder junto com ele.
A chefia da Funai situada em Passo Fundo confirma que a tensão é constante em Água Santa. O coordenador regional da fundação, Aécio Galiza Magalhães, ressalta que o Clube de Veteranos quer a desocupação dos indígenas do salão emprestado e ainda não há decisão sobre qual será o futuro dos dissidentes: voltar à aldeia Carreteiro ou irem embora para outra área indígena — algo que se repete com frequência na história caingangue.
A Polícia Federal abriu inquérito e já pediu à Justiça uma série de providências. Enquanto isso, a Brigada Militar aumentou o efetivo em Água Santa. O contingente habitual é de cinco PMs, que foi reforçado por outros quatro da Força Tática. O reforço ajudou a diminuir conflitos, mas eles não cessaram, sobretudo na área indígena, onde a BM não costuma entrar, porque é domínio federal.
“A gente vai manter a estrada bloqueada até tomarem providências”, diz cacique
O cacique caingangue Getúlio Daniel, chefe na aldeia Carreteiro (em Água Santa), diz que gostaria de se entender com os dissidentes que foram embora da área indígena, mas admite que o ressentimento é grande. Confira aqui a entrevista que ele concedeu por telefone a GaúchaZH.
O senhor foi baleado há poucos dias pelos dissidentes da aldeia. Conte mais.
Estava voltando para a área indígena, de carro, quando me fizeram uma emboscada perto de um mato. Quase morri, levei um tiro na perna. Isso não é coisa que se faça.
O que seus inimigos querem? Existe possibilidade de acordo?
Querem minha liderança, mas fui escolhido chefe. Não precisava eles irem para outra área, a gente até poderia deixar eles voltarem à aldeia, mas eles querem briga. Quando meu pessoal vai na cidade fazer compras, eles perseguem, apedrejam. Até tiro deram na minha gente.
O que motivou a briga? Por que mais de cem caingangues estão acampados na cidade?
Tivemos de exercer a liderança, né, contra sete famílias (cerca de 35 pessoas). Foi porque não aceitavam a autoridade do cacique. Queriam fazer as coisas por conta. Começaram a pegar em armas e atirar contra a gente. Sei que tem outros lá com eles, mas já estavam pela cidade, de outras épocas, ligados a outros líderes. Mas o antigo cacique não tem nada a ver com isso.
Tem a ver com indicação de professores e agentes de saúde?
Não. Era porque não queriam obedecer ao cacique. Para isso (professores e agentes de saúde), tem processo seletivo.
E o que o senhor tem feito?
Pedi à Polícia Federal e à Funai que façam algo. Vieram aqui, analisaram tudo, olharam tudo, foram embora e não tive mais retorno do que vão fazer. A gente vai manter a estrada para a aldeia bloqueada, até tomarem providências.