Milícia não existe apenas nos meios urbanos. Em plena mata do noroeste do RS, próximo à fronteira da Argentina, índios formaram grupos que usam de táticas paramilitares para amedrontar rivais, coagir, realizar prisões ilegais, atentados e até assassinatos. Quem afirma isso é a Polícia Federal, que pediu e conseguiu junto à Justiça Federal decretos de prisão para 14 caingangues da Reserva do Guarita — a maior do Rio Grande do Sul. Uma das justificativas para a expedição dos mandados foi formação de milícia armada por parte dos indígenas.
Dos 14 com prisão decretada, nove foram capturados e os demais estão foragidos. GaúchaZH teve acesso às ordens de prisão preventiva emitidas pelo juiz Rodrigo Becker Pinto, da 3ª Vara Federal de Passo Fundo. O documento é um detalhado relato da forma de atuação de duas milícias caingangues antagônicas que disputam o poder na Reserva do Guarita. As detenções foram ordenadas porque pelo menos oito incidentes graves foram registrados na área de 24 mil hectares. Entre eles, incêndios de residências e tiros contra adversários, que resultaram em feridos e um morto.
Emboscadas
A maior parte dos mandados judiciais é direcionada ao grupo do vice-cacique Vanderlei Ribeiro, o Vandinho, porque os relatos são de que eles organizaram duas emboscadas. Uma delas matou um caingangue ligado ao rival de Vandinho, o cacique Carlinhos Alfaiate, e feriu outros três, no dia 7 de novembro. Testemunhas apontam que os tiros tiveram participação direta de Zaqueu Claudino, outro líder indígena, que foi candidato a deputado estadual em 2014, pelo PCdoB, fazendo mais de 5 mil votos, mas não se elegeu.
Dias antes, em 19 de outubro, a mesma milícia indígena, segundo a ordem judicial, teria tentado assassinar o cacique Carlinhos Alfaiate. Diversas testemunhas relatam ter visto o grupo comprar dois galões de cinco litros de gasolina em um posto no distrito de Itapuã, na reserva indígena, e depois se dirigido em três veículos com homens armados até a residência do cacique, situada num mato.
Até um drone teria sido usado para observar a rotina do cacique. Mais de 20 tiros de revólver, pistola e fuzil foram disparados contra a residência de Alfaiate, que escapou correndo e teve de dormir na mata. A casa foi incendiada.
Por todos esses relatos, a PF pediu e conseguiu a prisão do grupo integrado por Vandinho e Zaqueu. Uma espingarda foi apreendida. Os policiais checam agora, por meio do sistema GPS, se os celulares e veículos dos caingangues suspeitos estavam nos locais dos crimes.
A investigação não se limita ao grupo do vice-cacique Vandinho. O juiz Rodrigo Becker Pinto também ordenou buscas e apreensões em residências ligadas ao cacique Carlinhos Alfaiate.
O inquérito que deu origem à investigação da PF, aliás, menciona que em setembro informes recebidos pelos policiais relatam que Alfaiate "constituiu milícia armada, com prática de cárceres privados, danos qualificados e porte ilegal de armas".
O advogado dos indígenas presos, Vanderlei Pompeo de Mattos, diz que "há exagero nos delitos" atribuídos ao grupo de Vandinho, mas prefere não detalhar, neste momento, sua opinião. Mattos afirma que pedirá a liberdade dos clientes.
É provável que alguém considere exagero comparar os grupos indígenas a milícias, mas a procuradora da República Camila Bortolotti diz que há indícios nesse sentido. Ela admite que o cacique é autoridade máxima na terra indígena, por prerrogativas históricas, mas para tudo há limite.
— Não cabe extorsão, ameaça, disparos e porte de arma de fogo. Assim, se ficar comprovado que o grupo do cacique e do vice-cacique integraram grupo que praticou esses crimes, sim, as condutas podem ser equiparadas àquelas das milícias urbanas — conclui.
Veja a seguir cinco das práticas apontadas neste inquérito e em outros que envolvem caingangues da Reserva do Guarita:
- Armamento e tiros para amedrontar adversários — em 17 de outubro policiais militares apreenderam um revólver calibre 38, uma espingarda calibre 36 e dois rifles calibre 22 com um integrante do grupo de Carlinhos Alfaiate. O próprio cacique teria feito ameaças a uma indígena, "portando um revólver na cintura". O juiz diz que a "a estrutura do grupo de Carlinhos Alfaiate segue a lógica do grupo oposto, de Vanderlei Ribeiro, de organizar-se com aparato de armas (o que não é uma ilação, mas uma constatação pela apreensão realizada)..."
- Prisões ilegais e espancamentos de dissidentes — em entrevista a GaúchaZH, antes de ser preso, Vandinho acusou o cacique Carlinhos Alfaiate de ordenar mais de 150 prisões de dissidentes. Esses são colocados numa cadeia improvisada dentro da área indígena, semelhante a uma jaula, segundo relato do vice-cacique. A milícia também teria espancado com bordunas diversos indígenas que não aceitariam a liderança de Alfaiate. O cacique não nega a existência da cadeia.
- Aluguéis ilegais — foi solicitada à Polícia Federal abertura de investigações sobre atividades econômicas ilegais realizadas pelo grupo do cacique Carlinhos Alfaiate e que são habituais na reserva do Guarita. Uma delas é o arrendamento de terras a brancos. Mais da metade dos 24 mil hectares da área indígena são dedicados ao plantio de soja, trigo, milho e sorgo, entre outras culturas. Por terem pouco maquinário e implementos agrícolas, os caingangues alugam a terra para colonos brancos. Em troca da permissão para plantio, receberiam dinheiro - o que é ilegal. Há relato de que, de cada hectare plantado, duas sacas colhidas vão para o cacique (a R$ 62 cada uma).
- Extorsões — as lideranças caingangues cobrariam repasses de dinheiro pelos servidores que o cacique indica para a área de saúde (12 postos) e educação (são 12 escolas indígenas). Trabalhadores de frigoríficos privados situados na área da reserva também teriam de pagar para serem indicados ao serviço. Quem não paga seria perseguido ou expulso, diz o vice-cacique Vandinho. Uma investigação foi aberta na PF com base nessa alegação do vice-cacique e em outros depoimentos.
- Participação em assaltos — esse crime não seria da atual gestão. Antes da dupla Carlinhos Alfaiate-Vanderlei Ribeiro assumir o cacicado, a reserva do Guarita era comandada pelo cacique Valdonês Joaquim. Ele e o pai dele, Valdir, foram presos em 2017 por envolvimento numa quadrilha de assaltantes de banco que se escondia dentro da reserva, usando carro de familiar do cacique para assaltos e uma residência dele como esconderijo. O ex-cacique continua preso e vai a julgamento.