Em Pelotas e pequenas cidades da Zona Sul, o medo atendia por uma sigla: Nasf. Essa empresa de vigilância, desarticulada após ação do Ministério Público, agia tendo a tortura e a brutalidade como métodos cotidianos. Entre suas vítimas preferenciais, viciados em crack e autores de pequenos furtos, mas trabalhadores e estudantes também foram alcançados pelos golpes de bastões de beisebol dados pelos agentes.
Homens considerados suspeitos pela Nasf foram espancados, conforme descrito nas 3,7 mil páginas do processo, o que levou a Justiça a condenar 11 integrantes da empresa de segurança por formação de milícia, violações de domicílio, incêndio, lesões corporais e porte ilegal de armas, além de espancamentos sistemáticos que foram caracterizados como crime de tortura.
Entre 2015 e 2016, a Nasf teve crescimento exponencial, somando cinco mil clientes, de residências a comércios, em Pelotas, Capão do Leão, Pedro Osório e Canguçu. Os proprietários da empresa, o tenente da reserva da Brigada Militar Nelson Antônio da Silva Fernandes, e o seu filho Wagner Nicoletti Fernandes, informaram que obtinham ganhos mensais entre R$ 10 mil e R$ 15 mil.
Rendimentos construídos a partir de uma ordem paralela em que os homens da Nasf diziam ser "a lei", fazendo investigações, invadindo domicílios sem mandado e, independente da autoria, espancando os supostos culpados. Familiares e amigos de suspeitos também foram agredidos por milicianos que buscavam informações sobre os seus paradeiros.
— A Nasf eliminava essas etapas. Eles mesmos julgavam, condenavam e castigavam de forma sumária — resume o promotor Reginaldo Freitas da Silva, do Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público, que denunciou os réus por formação de milícia e tortura, entre outros crimes.
Se apanho uma tunda daquelas, nunca mais levanto.
NELSON ANTÔNIO DA SILVA FERNANDES
proprietário da Nasf, sobre vítima de agressões
No inquérito, as provas contra os membros da Nasf foram construídas por meio de depoimentos de testemunhas e vítimas, além de interceptações telefônicas que foram reveladoras no curso da investigação.
"Se apanho uma tunda daquelas, nunca mais levanto", disse o tenente Nelson em uma gravação, se referindo a uma vítima. Descrito no processo como alguém que se gabava das sessões de tortura, contou ao telefone ter "quebrado o fêmur" de uma pessoa não identificada.
A sentença, do juiz André Luís Acunha, da 3ª Vara Criminal de Pelotas, foi anunciada no dia 6 de dezembro e resultou em penas que variam de 9 anos e seis meses, a mais baixa, até 18 anos e dois meses de reclusão, esta para o sócio-proprietário da Nasf, o tenente Nelson. Wagner foi condenado a 10 anos e quatro meses. Todos os 11 sentenciados estão presos e continuarão cumprindo a pena em regime fechado. Da decisão, cabe recurso. Outros 19 réus aguardam julgamento em liberdade.
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ATUAÇÃO IRREGULAR
A Nasf, oficialmente, era uma empresa de zeladoria e portaria, atividade fiscalizada pela Brigada Militar e que não autoriza o uso de armas de fogo ou patrulhas ostensivas. Em depoimentos na condição de testemunhas, brigadianos contaram ter recebido diversas denúncias pelo fato de a Nasf extrapolar suas atribuições.
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Relatos da brutalidade
Nu em via pública
Uma das vítimas do grupo fumava crack quando foi abordada por cerca de 10 homens que se apresentavam como policiais, alguns trajando fardas militares e com porretes. Era a milícia. Gritando que queriam saber onde estava uma balança roubada de um mercado cliente da Nasf, os empregados começaram o espancamento, desferindo cacetadas. No fim da tortura, o agredido foi obrigado a tirar as roupas, ficando nu em via pública. Em depoimento, o dono do comércio disse que a balança não foi recuperada.
Choques e pauladas
Em uma madrugada, 12 milicianos da Nasf invadiram a casa de um homem que estava na companhia de três amigos, em preparativos para um churrasco. Os intrusos anunciaram que queriam recolher armas, drogas e objetos de furto. Apenas uma mulher foi poupada da dilaceração com barras de ferro, coronhadas e choque. Um idoso que estava no pátio da residência tomou uma paulada.
O morador do local tinha passado de envolvimento em ocorrências policiais, incluindo um homicídio, mas a milícia, na ocasião, não teria mencionado nenhum delito dele contra clientes que motivasse a ação vingativa. No processo judicial, não é descartado que outras pessoas tenham contratado a milícia para aniquilar desafetos.
"A Nasf não tem medo de estudante"
Na região do porto de Pelotas, voltando para casa à noite em localidade escura e pouco movimentada, um estudante foi abordado por um homem que saiu de dentro de caminhonete da Nasf. Era Wagner, que pediu a identificação do jovem. Pelo fato de o interlocutor não ser um servidor de segurança pública, ele se recusou. O filho do tenente Nelson teria mostrado que estava armado e retirado uma placa da Nasf da porta traseira do veículo, mandando o estudante ler o slogan "braço forte da comunidade".
A vítima passou a ser agredida, primeiro com um soco no estômago. Ao tentar correr em fuga, ficou sob a mira do revólver, contou em depoimento. Depois de ler a placa da Nasf para deixar de ser massacrado, diz ter recebido o alerta de Wagner: "Avisa teus coleguinhas que a Nasf não tem medo de estudante", informa trecho do processo judicial.
Discussão de trânsito vira pancadaria
Com os espancamentos e intimidações, a Nasf "mostrava serviço" na busca por mais clientes. E deixava eventuais inimigos temerários. Demonstrando sanha por violência, até mesmo uma situação cotidiana de trânsito se tornava motivação para pancadaria. Cinco jovens sem antecedentes criminais divididos em três motocicletas voltavam de um dia de trabalho em uma obra e tiveram a má sorte de fazer uma ultrapassagem sobre veículo da Nasf.
Quando pararam em um posto de combustível, os pedreiros foram abordados e, acossados por armas de fogo, revistados. Sofreram socos, pontapés e coronhadas. Um dos motoqueiros foi obrigado pelos milicianos a arrastar as nádegas no chão por cerca de dois metros. Tudo porque na moto dele um adesivo anunciava: "Empinar é arte, arrastar faz parte".
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CONTRAPONTOS
O que dizem Vitor Frozza Paladini e Fernando Martinelli, advogados de Nelson Antônio da Silva Fernandes e Wagner Nicoletti Fernandes:
"Vamos recorrer da sentença. As provas produzidas pelo MP não foram suficientes para a condenação. E existem provas no processo que são nulas. A quebra do sigilo telefônico, por exemplo, foi decretada por um juiz plantonista. Ele recebeu o pedido e, no plantão, concedeu a quebra com uma fundamentação rasa. Entendemos que essa decisão é nula."