Com o assassinato de 56 detentos no Amazonas na virada do ano, 2017 começa com nova fase da violência no país. O conflito dentro do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, revela a força de grupos criminosos que dominam cadeias brasileiras e tendem a expandir suas desavenças e atos de crueldade para as ruas, a exemplo do que já ocorreu há três décadas na Colômbia.
O alerta é de especialistas como o ex-secretário da Segurança do Rio José Mariano Beltrame – primeira autoridade brasileira a advertir sobre o tema, em junho passado, quando a facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) matou o traficante Jorge Rafaat, no lado paraguaio da fronteira com o Brasil.
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Rafaat era homem forte do Comando Vermelho (CV), criado havia quatro décadas no Rio de Janeiro. Até então enraizado em Pedro Juan Caballero, era o principal "exportador" de armas e drogas para o bando e aliados.
A execução de Rafaat, com rajada de 200 tiros de metralhadora calibre .50, capaz de derrubar helicóptero, é um divisor de águas. Rompeu a linha do crime organizado entre os dois países, levando o PCC a fincar sua bandeira em definitivo no Paraguai, incrementando ramificações com bases na Colômbia e no Peru.
O PCC tem integrantes ou apoiadores em 22 Estados brasileiros e a guerra contra o CV em Manaus é mais um capítulo do fim de uma antiga parceria entre aliados. O perfil empresarial do grupo paulista contrastou com o estilo informal dos cariocas, que medem forças derramando sangue.
– Há uma tendência muito preocupante. Não existe mais entreposto entre o Brasil e o Paraguai. Agora, o Paraguai é brasileiro. É uma situação grave que só tende a aumentar. Qualquer facção criminosa não precisa mais ir até lá. É só falar com o PCC, que é muito maior e mais profissional que o CV. Eles fornecem o que quiserem e onde quiserem. Cumprindo com pagamento, não há problemas – lamenta Beltrame.
O temor de especialistas é de que os confrontos intramuros das cadeias se reproduzam nas ruas, como protagonizado pelos cartéis de drogas de Cáli em Medellín, entre os anos 1980 e 1990. Pablo Escobar, chefe do bando de Medellín, ordenou ao menos 4 mil mortes, com explosões em estabelecimentos comerciais, prédios públicos e de carros-bomba, que vitimaram a população civil, policiais e autoridades.
O advogado Lúcio Constantino, professor universitário especialista em Criminologia, salienta que o Brasil perdeu o controle sobre a criminalidade, permitindo a criação de organizações criminosas que lembram as colombianas.
– Hoje, o Brasil está sim, uma Colômbia do Pablo Escobar. Existem regiões nas quais a polícia não chega, que a política não se atreve a acessar, que é um exemplo clássico da Colômbia. A diferença dos dois países é o espaço. Se pudesse dividir o Brasil em países, o Amazonas seria exemplo de Colômbia, porque há referência de produção de drogas lá – afirma Constantino.
O sociólogo Juan Mario Fandino, colombiano que vive no Rio Grande do Sul há 40 anos, lembra que até guerrilheiros que tinham objetivos de combate político se envolveram com o tráfico e com execuções.
Investigações da Polícia Federal apontam que a facção Família do Norte (FDN), aliada ao CV e responsável pela matança no presídio de Manaus, tem conexões com guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que forneceriam armas e drogas para o bando no Amazonas. Beltrame acrescenta que o terror vivido na Colômbia, de certo modo, faz parte do nosso cotidiano.
– Isso já acontece. Às vezes você vê, em certos lugares, que uma pessoa entrou em uma casa, matou o marido, a mulher, familiares e outros tantos que encontrou. A polícia vai investigar e descobre que era problema com o tráfico – acrescenta Beltrame.
Apreensão de fuzis cresceu 140% no RS
Mesmo com as previsões de Beltrame, quando alertou sobre as consequências do assassinato de Rafaat, autoridades nacionais não tomaram providências. O poderio bélico das quadrilhas é cada vez mais evidente. Estatística da polícia do Rio indica apreensão de um fuzil por dia. Em São Paulo, recolhem um fuzil a cada 48 horas.
No Rio Grande do Sul, apesar de não ser percebida a presença física de integrantes do PCC em cadeias e entre quadrilheiros, a facção paulista é apontada como fornecedora de armas pesadas para grupos locais. Apenas nos primeiros quatro meses de 2016, por exemplo, a apreensão de fuzis pela Polícia Civil gaúcha cresceu 140%.
– É a lei do crime. Quem fica devendo paga com a sua vida e com a de terceiros –acrescenta Beltrame.
O ex-secretário defende iniciativas conjuntas de municípios, Estados e União, inclusive com a participação do Ministério da Defesa, nas fronteiras, e a construção de 500 presídios para tentar sufocar a criminalidade. Se nada for feito, a tendência é de que o poder do crime organizado seja fortalecido.
– Podem aumentar as explosões de carros-fortes, assaltos a bancos, grandes roubos. É este o tipo de violência que vem por aí. Vão tentar se perpetrar dentro do poder público e outras instituições e pode virar um esquema cartelizado. Não podemos deixar chegar a esse ponto. Porque o cartel, quando tem de matar, mata.