Romper com o companheiro após criar vínculo emocional, se reconhecer vítima de violência, aceitar que o relacionamento não deu certo e levar o caso ao conhecimento da polícia é um processo doloroso para mulheres que sofrem violência doméstica.
Com rosto delicado, de quem acabou de sair da adolescência, uma jovem de 20 anos preenche uma ficha na recepção da Delegacia da Mulher de Porto Alegre, acompanhada da filha pequena, que irradia simpatia e conquista os olhares de quem está na sala. Os passos da menina são tão ágeis que interrompem a concentração da mãe. Ela não se importa de parar o que está fazendo para correr atrás da criança.
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A filha, alheia às dificuldades da vida adulta, não imagina que a mãe acabou de denunciar a violência doméstica praticada durante três anos pelo pai. A decisão de registrar as agressões não foi em causa própria, mas com o intuito de proteger a criança, que se tornou alvo do agressor e o principal motivo da luta por Justiça.
Embora tenha terminado o relacionamento com aquele que um dia já foi o seu grande amor, a garota ainda recebe ameaças.
– Ele diz que vai quebrar a minha cara e vai levar a minha filha de mim.
O coração dispara
A jovem aceitou contar a sua história sem se identificar. Quando a equipe de reportagem chegou à casa dela no dia combinado, ela não atendeu a campainha e as chamadas no celular. Apenas quando nos identificamos por mensagem no WhatsApp foi que a moça encorajou-se a abrir a porta.
Toda vez que a campainha toca, o coração dispara. O mesmo acontece quando um número estranho chama no celular. As ameaças do ex-namorado a perturbam e a impedem de ter uma vida normal.
A jovem é mais uma mulher vítima do “ciclo da violência doméstica”, um comportamento patológico, influenciado pela cultura, que oprime mulheres e as torna passivas de uma violência que nem sempre é física, mas constantemente perversa.
DIFERENTES GERAÇÕES, MESMA VIOLÊNCIA
Duas mulheres de idades e classes sociais diferentes são exemplos vivos do ciclo da violência. A jovem mãe de classe de 20 anos, classe média, conheceu o primeiro amor ainda na adolescência. No início, o ciúmes era encarado como cuidado. Com o tempo, transformou-se em obsessão. Sem se dar conta, o namorado passou a controlar os seus passos, a relação com os amigos e até as mensagens no celular.
– No começo era encantador, eu pensava que ele sentia ciúmes porque gostava de mim.
A gota d'água
O controle evoluiu para agressões verbais e logo se transformou em físicas.
– Depois que a gente brigava ele chorava, dizia que eu era a única coisa que ele tinha na vida.
A última violência que sofreu, durante a gravidez, foi decisiva: – Um dia ele me sufocou, quase morri. Meu bebê parou de mexer, fiquei apavorada. Foi quando senti aquilo tudo pesar.
Mesmo após o término do namoro, a jovem continuou sendo perseguida, registrou ocorrência e conseguiu medida protetiva.
Duas vezes
A segunda vítima ouvida, 43 anos, de família carente, sofreu violência nos 20 anos que durou o primeiro relacionamento que lhe deu três filhos. Ela só conseguiu se livrar da violência quando ganhou abrigo de uma vizinha. Mais tarde teve que retornar para a casa dos pais
– Uma vez ele cortou meu braço com um pedaço de louça quebrada. Até fome ele me fez passar. Fiquei esse tempo todo com ele porque fui obrigada, não tinha para onde ir e nem com quem contar .
No segundo relacionamento, que durou cinco anos, reviveu a violência, mas criou coragem e denunciou à polícia.
ALERTA: SINAIS DE QUE ALGO NÃO VAI BEM
A violência doméstica tem como ponto departida uma relação amorosa, que iniciou com afeto. Perceber que o relacionamento se tornou abusivo não é uma tarefa fácil para vítimas que cresceram em um lar violento, raramente receberam orientações de empoderamento ou construíram vínculos emocionais e financeiros com o parceiro.
Quando a mulher se dá conta, o cônjuge passou de companheiro a agressor, em um processo gradativo chamado de “ciclo da violência doméstica”.
Ciúme exacerbado
Para especialistas, o ciúme exacerbado e o controle da vida social da mulher são sinais de que algo não vai bem.
– Ele vai invadindo aos poucos e ela vai permitindo. O ciúme se transforma em controle. Ele quer saber onde ela vai e com quem está falando. As restrições acabam impedindo que ela tenha círculo social e contato com a família– narra a coordenadora do abrigo de mulheres Viva Maria, Saionara Santos Rocha.
Começa com a...
O ciclo normalmente se inicia na fase da tensão, com agressões verbais. O passo seguinte costuma ser a explosão, quando ocorre a agressão física ou sexual. Após a tempestade, vem a última fase do ciclo: a reconciliação. O parceiro pede perdão e vive em lua de mel com a companheira até que novo episódio volte a tirá-lo do sério. É nesta fase que algumas vítimas desistem do registro da ocorrência policial, por alimentarem a esperança de que as coisas podem mudar.
OBSTÁCULOS NO CAMINHO
Para a delegada adjunta da Delegacia da Mulher da Capital Tatiana Bastos, o fator que impede o rompimento do ciclo da violência não é único.
– A violência acaba sendo tolerada pela questão da dependência econômica, baixa autoestima, dependência psicológica, pelo sentimento que ela nutre pelo agressor e até mesmo por ter filhos com ele – observa.
A psicóloga do Centro de Referência da Mulher Márcia Calixto, Luciana Magalhães, faz questão de destacar as vítimas que viu romper o relacionamento e escrever uma nova história. Outras, no entanto, acabaram reproduzindo a mesma relação com o parceiro seguinte.
– Precisamos pensar o que nos leva a nos relacionarmos com determinadas pessoas. Falta espaço de reflexão entre um e outro. Acredito que existe uma questão pessoal de cada um que é reforçada pelo ambiente cultural. Temos que desconstruir o paradigma de que a mulher deve ser submissa, casar e ter filhos – defende.
MEDIDA INIBE AGRESSÕES
A jornada até chegar a DP é longa. A maioria das vítimas que faz o registro já sofre violência há anos. Para a delegada Tatiana Bastos, as medidas protetivas não são um escudo, mas inibem a violência.
– O Relatório Lilás de 2014 lançado pela Assembleia Legislativa revelou que 80% das mulheres vítimas de feminicídio não tinha medida protetiva. Muitas sequer denunciaram. O fato de se calar e não pedir ajuda faz com que ela fique mais vulnerável – alerta.
Vários pedidos
O mesmo foi constatado pela juíza Madgeli Machado,que em sete anos no 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar, viu apenas uma mulher com medida protetiva ser assassinada em Porto Alegre.
No olhar da polícia, a maior dificuldade é conseguir o atendimento do pedido por parte do Poder Judiciário. A situação é percebida cada vez que a vítima retorna à delegacia e solicita mais uma vez a proteção. Em contrapartida, a juíz a afirma que a medida é concedida na maioria dos casos avaliados pelo Judiciário da Capital.
REDE FUNCIONA, MAS COM FALHAS
A primeira porta para a vítima costuma ser a DP. Após o registro ela será encaminhada para a rede de atendimento. Se estiver em risco,tem a opção de ir para um abrigo. A vítima também pode contar com assistência psicológica e social que é prestada pelos centros especializados.Na avaliação da delegada, a rede ainda precisa de plantão 24 horas para funcionar em sua plenitude.
– A lei é muito positiva e dá vários instrumentos de proteção, mas não foi totalmente implementada, principalmente no que tange à política pública. Qual é o serviço que funciona após as 18h? Plantão, só na DP.
Falta estrutura
A juíza destaca a falta de policiais para prestar todos os atendimentos que de mandam uma DP especializada. Para ela, o abrigo da Capital e os dois centros de referência não são suficientes. Sem contar que muitos municípios recorrem à Capital porque não contam com os serviços.
– O combate à violência doméstica tem que ser prioridade não só no serviço de segurança, mas para todos os integrantes do sistema – completou.
VÍDEO: Confira o depoimento de vítimas de violência doméstica
PERFIL DAS VÍTIMAS
Pesquisas feitas pela Secretaria da Segurançvioa Pública e pelo Centro de Referência da Mulher Márcia Calixto, da Secretaria Adjuntada Mulher, da Capital, revelam o perfil das vítimas e agressores.
Uma constatação:o percentual que permanece no atendimento social após o registro de ocorrência ainda é pequeno comparado ao número de BOs protocolados.
Quem são elas
Mas os resultados obtidos com o grupo que se mantém são positivos. Segundo a secretária Waleska Vasconcellos, as vítimas podem ser atendidas mesmo sem a ocorrência. A maioria das mulheres recebidas no Márcia Calixto tem entre 30 e 59 anos, renda entre R$ 700 e R$ 2 mil, e boa escolaridade.
Mais de 50% delas sofreram violência física e 75%, psicológica. A sexual está presente no relato de 23%. Já a pesquisa realizada na Delegacia da Mulher da Capital aponta algumas diferenças: a maior parte das que procuram a polícia tem entre 19 e 29 anos, e ensino fundamental incompleto. Pelo menos 65% solicitou medida protetiva.
Mais denúncias
Nos primeiros anos de implementação da Lei Maria da Penha, a DP da Mulher da Capital não tinha 6 mil registros. Desde 2008, quando a lei foi amplamente difundida, alcançou 13 mil e mantém a média de 12 mil por ano. Os dados do Estado revelam que a DP especializada da Capital protocolou 39,3 mil ocorrências nos últimos quatro anos.
As 27 DPs da Região Metropolitana contabilizaram mais de 79,5 mil. Para a delegada titular de Porto Alegre, Claudia Crusius, não foi a violência que aumentou, mas a quantidade de denúncias. Ainda assim, ela destaca a existência de uma“cifra oculta”, formada pelas vítimas que não denunciam por medo ou vergonha.
– A lesão corporal é visível ao espelho, mas o homem ficar chamando ela de gorda, velha e feia se torna normal e, de tanto ouvir, a autoestima dela vai lá embaixo e ela não sedá conta de que isso também é uma forma de abuso – ressalta a delegada.