As declarações do promotor de Justiça Theodoro Alexandre da Silva Silveira dirigidas a uma adolescente vítima de abusos sexuais praticados pelo próprio pai, em Júlio de Castilhos, no interior do Rio Grande do Sul, deixaram estarrecidos profissionais ligados à área da Infância e da Juventude. Conforme avaliação de especialistas, o representante do Ministério Público Estadual (MP) cometeu uma série de violações institucionais e afrontou a dignidade da menina. Além disso, a situação pode provocar graves problemas emocionais à adolescente.
O advogado Ariel de Castro Alves, vice-presidente da Comissão Especial da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB, afirma que ficou chocado ao tomar conhecimento do caso, que ganhou repercussão nacional. Segundo ele, a jovem foi revitimizada por uma autoridade que deveria protegê-la diante da Justiça.
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– É um caso que choca a sociedade e demonstra o quanto ainda precisamos avançar nessa questão da proteção à vítima. São declarações estarrecedoras. Ninguém pode receber um tratamento indigno e desrespeitoso, nem mesmo réus. Não se pode aceitar que uma vítima seja submetida a essa situação. Ela foi revitimizada. Acabaram cometendo novos crimes contra ela. Ela sofreu ofensas à honra, injúria, calúnia, difamação – analisa Ariel, que também é ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
Ainda de acordo com o advogado, é comum que vítimas de abusos sexuais domésticos voltem atrás em seus depoimentos, exatamente como aconteceu com a jovem de Júlio de Castilhos. No entanto, a conduta do promotor, segundo Ariel, deveria ter sido a de investigar as razões pelas quais a menina mudou a versão inicial.
– Muitas vezes, por pressão dos familiares, por estarem em situação de submissão ou por dependerem do próprio autor da violência, as vítimas acabam mudando versões. É normal acontecer isso. Agora, não se pode aceitar que uma vítima seja submetida a uma situação dessas – acrescenta.
A psicóloga Aide Knijnik avalia que a adolescente encontrou na figura do promotor uma pessoa tão perversa e má quanto o próprio pai e que a situação à qual foi submetida poderá provocar sequelas difíceis de serem superadas no futuro.
– Essa menina foi estuprada duas vezes. Ela ficou desamparada. Futuramente, a tendência é de que ela perca toda confiança de estabelecer novos vínculos, de acreditar nas pessoas. É um caso muito sério e tão grave que poderá implicar depressão – avalia a psicóloga.
A Fundação de Atendimento Sócioeducativo (Fase) emitiu uma nota de repúdio, nesta quinta-feira, às declarações do promotor sugerindo que a adolescente deveria ir para a Fase para "a estuprarem e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá".
O presidente da fundação, Robson Luis Zinn, disse que a Fase busca fazer o melhor para a ressocialização dos jovens para devolvê-los com ampliação dos níveis de escolaridade. Segundo ele, todos os internos são obrigados a estudar e realizar algum curso profissionalizante para que tenham oportunidades no mercado de trabalho.
"Além disso, temos como preceito fundamental a garantia da integridade física de todos os adolescentes que cumprem medida socioeducativa nesta fundação. Ressalto que a Fase pauta sua conduta por práticas transparentes, sendo frequentemente fiscalizada por membros do Poder Judiciário e do Ministério Público", escreveu o presidente da Fase.
Entenda
O caso foi revelado nesta quinta-feira por Zero Hora. A audiência ocorreu durante a instrução do processo que tramitava contra o pai da adolescente, acusado de abusar da menina e de engravidá-la. Quando a gravidez foi descoberta e o caso passou a ser apurado, a vítima contou a autoridades detalhes da violência sexual que sofria do pai e afirmou que a gravidez era decorrente dessas relações forçadas.
Ela então obteve autorização judicial para fazer um aborto. Depois disso, quando ouvida novamente na Justiça, negou o abuso por parte do pai (supostamente pressionada pela família). Foi isso que causou a irritação do promotor na audiência, ocorrida em 2014:
"Pra abrir as pernas e dá o rabo pra um cara tu tem maturidade, tu é autossuficiente, e pra assumir uma criança tu não tem? Tu é uma pessoa de sorte, porque tu é menor de 18, se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora, pra tu ir lá na Fase, pra te estuprarem lá e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá."
A audiência foi gravada em imagem e áudio. No acórdão da 7ª Câmara Criminal, constam outros trechos da fala do promotor."Tu teve coragem de fazer o pior, matou uma criança, agora fica com essa carinha de anjo", ataca o representante do Ministério Público."Eu vou me esforçar o máximo pra te pôr na cadeia. Além de matar uma criança, tu é mentirosa? Que papelão, heim? Vou me esforçar pra te ferrar, pode ter certeza disso, eu não sou teu amigo", diz outro trecho da manifestação do promotor contra a vítima.
A adolescente estava sendo ouvida como vítima. O processo contra o pai seguiu tramitando e ele foi condenado pela Justiça de Júlio de Castilhos a 27 anos de prisão por estupro. Um exame de DNA no feto comprovou que o feto era dele. O julgamento do recurso da defesa do pai da adolescente no TJ ocorreu em 31 de agosto. Ele teve a pena reduzida de 27 para 17 anos e está preso.
Pelo TJ, a assessoria de imprensa informou que a Corregedoria-Geral da Justiça instaurou expediente que poderá resultar em arquivamento ou abertura de procedimento administrativo disciplinar (PAD) contra a juíza.
Antes mesmo de a denúncia chegar ao CNMP, o corregedor nacional do MP, Cláudio Henrique Portela do Rego, decidiu, por ato de ofício, abrir reclamação disciplinar contra Silveira. O processo pode se tornar um PAD e, nesse caso, será designado, por sorteio automático, para relatoria de um dos 14 conselheiros do CNMP. Esse conselheiro pode, então, proferir decisão sozinho ou levar o caso ao plenário. As punições seguem o previsto na lei orgânica do MP do Estado do acusado, que podem variar de censura até a exoneração do cargo.
*Zero Hora