A resistência bacteriana é um dos problemas que mais perturbam a comunidade médica. Mal usados, os antibióticos estimularam os mecanismos de defesa desses microrganismos, que estão cada vez mais fortes e devem causar mais mortes do que o câncer em 2050, de acordo com estudo desenvolvido no Reino Unido.
Vista como uma evolução natural das bactérias, a resistência é observada desde 1940, 12 anos depois do surgimento da penicilina, o primeiro antibiótico do mundo. O que impressiona é a velocidade com que elas passaram a sobreviver às drogas nos últimos anos.
– A resistência sempre existiu. O que a gente fez foi dar um gás para as bactérias acenderem a chama. Passamos a expô-las demais a muitos compostos, os antibióticos ficaram mais potentes e começamos a usá-los em uma quantidade enorme. As bactérias passaram a se proteger – diz o médico Alberto Chebabo, do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele presidiu o 20º Congresso Brasileiro de Infectologia, evento que discutiu o tema e foi acompanhado pela reportagem de Zero Hora.
Toda vez que um medicamento é utilizado de forma inadequada, por má prescrição ou falta de disciplina no tratamento, por exemplo, estimula-se o crescimento dessa cadeia multirresistente. O tiro sai pela culatra: o uso do antibiótico mata também as bactérias sensíveis, deixando uma lacuna para as superbactérias se multiplicarem.
– A pessoa tem uma população de bactérias que é sensível e algumas que são resistentes. Na hora em que se usa antibiótico, a maioria das sensíveis morre e as poucas resistentes ocupam o lugar vazio. A infecção é precedida pela colonização desses microrganismos. Ou seja: a bactéria está lá, mas não causa nada. No momento da oportunidade, ela provoca uma infecção. O grande problema é que, nessa epidemia silenciosa, a pessoa ingere as bactérias, elas ficam quietinhas, e isso só aparece quando a imunidade cai. Quando o paciente entra no hospital, por exemplo, elas ganham espaço – explica a médica Flávia Rossi, diretora do Laboratório de Microbiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Outro ponto nevrálgico dessa questão, e bastante criticado pelos infectologistas, é a indicação exagerada de antibióticos. Chebabo avalia que o problema está na falta de um diagnóstico assertivo prévio:
– Um exemplo bastante habitual é a infecção urinária, problema bem comum nas mulheres. Você toma um determinado antibiótico e trata. Em uma segunda infecção, usa o mesmo medicamento e se cura. Na terceira vez, provavelmente, aquela droga não vai mais surtir efeito. Muitas vezes, se faz exame de cultura e aparece uma bactéria. Mas ela está causando algum problema? A pessoa está mal? Só que o médico vê bactéria e receita antibiótico, e a bactéria fica resistente. No fim, tem de internar um paciente, que não tinha nada, para fazer medicamento venoso. Esse é um dos exemplos mais comuns de uso inadequado de antibiótico.
O grave problema da cadeia alimentar
O uso indiscriminado de antibióticos em humanos, apesar de grave, não é a principal preocupação da comunidade médica. A utilização para fins veterinários, que ajuda a acelerar o crescimento de animais de corte como frango, porco e gado, é um dos pontos mais críticos da situação.
– Esses animais são criados em confinamento, o que faz com que adoeçam muito mais. Para evitar que fiquem doentes e para que cresçam e ganhem peso mais rápido, recebem medicamentos – diz Ana.
Esse é o pontapé inicial de uma cadeia que, em boa parte das vezes, acaba em um hospital. Funciona mais ou menos assim: os animais recebem um medicamento para estimular o crescimento. Essa substância mata as bactérias sensíveis, mas mantém aquelas resistentes. Quando o ser humano come a carne, absorve esse microrganismo. Oportunista, ele se aproveita da ausência de bactérias sensíveis para se espraiar, atacando quando a imunidade está mais baixa.
Ana explica que o cozimento das carnes é capaz de eliminar alguns desses microrganismos. No entanto, eles permanecem nos objetos da cozinha. Assim, a faca que cortou a carne contamina a cenoura, o tomate e o que mais vier pela frente.
Outra exposição perigosa é a sofrida pelos tratadores desses animais, que entram em contato direto com as bactérias resistentes. Fezes e urina dos bichos também podem contaminar o solo e a água, prejudicando até as plantações de alimentos, por exemplo.
Diante dessa situação, surge o conceito de Saúde Única (One Health), que envolve as saúdes humana, animal e ambiental e enxerga, nesse conjunto, um caminho para controlar a resistência. Por isso, aliadas à OMS, trabalham entidades como Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO) e a World Organisation for Animal Health (OIE), que pretendem, entre outras ações, melhorar a comunicação sobre o problema e fortalecer a vigilância e o monitoramento da resistência bacteriana e do uso de antibióticos na agricultura e nos alimentos.
Falta de informações é entrave para pesquisas
Um dos agravantes dessa situação é a falta de informações. No Brasil, não há dados sobre a resistência bacteriana na comunidade, o que significa que os únicos números disponíveis para pesquisa são bastante restritos e dizem respeito ao ambiente hospitalar de alta complexidade.
– O único programa de vigilância que se tem é o da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que monitora patógenos que causam infecção na corrente sanguínea associado a infecções de cateter. É bem restrito. Não há um programa nacional que monitore a taxa de resistência em paciente com infecção urinária ou de bactérias que causem pneumonia na comunidade, por exemplo – exemplifica a coordenadora do Comitê de Resistência Bacteriana da SBI, Ana Cristina Gales, que também lidera o Comitê Brasileiros de Teste de Sensibilidade a Antimicrobianos (BRCast).